Capítulo 1 - Ciência e Imaginação



No editorial da edição de janeiro de 1988 da revista de divulgação científica Superinteressante lemos o seguinte:
Quero afirmar um dos princípios básicos de Superinteressante: nossa matéria prima é a realidade. Jamais usaremos a imaginação para torná-la mais rica, fantástica ou atraente, pois acreditamos que o mundo real é muito mais fascinante do que qualquer outro que o homem possa criar.[1]
            Depreende-se do texto que a imaginação é como um corpo estranho à ciência, um parasita que deve ser eliminado por aqueles que pretendem, de fato, realizar ciência ou exercer a divulgação científica. Tal posição identifica-se, evidentemente, com a distinção entre os contextos da descoberta e da justificativa. Como explica Isaac Epstein, tal distinção remonta a Hans Reinchenbach:
Eu introduzirei os termos contexto da descoberta e contexto da justificativa para marcar a bem conhecida diferença entre o modo como o pensador descobre seu teorema e a sua maneira de apresentá-lo ao público. [2]
            A imaginação pertence ao contexto da descoberta e os cientistas que defendem tal separação, pregam que esse é um contexto que não interessa à ciência. Hempel explica essa valorização:
O que determina a solidez de uma hipótese não é o modo como se chegou a ela (pode ter sido sugerida até mesmo por um sonho ou por uma alucinação) mas o modo como se mantém quando confrontada com os dados relevantes relacionados com a observação.[3]
            Essa maneira de ver a ciência faz parte de uma tentativa de purificação da mesma. Seus idealizadores pretendiam, com isso, facilitar a distinção entre o que é o que não científico. Assim, a maneira pela qual o cientista chegou ao seu descobrimento seria irrelevante, algo a ser estudado pela história ou pela psicologia da ciência. O que interessaria realmente seria como a hipótese se aguentaria depois de examinada, justificada, criticada e aferida
            Isaac Epstein, no entanto, argumenta que essa divisão é sublinhada muito mais pelos autores cujos trabalhos se incluem no contexto da justificação do que por aqueles que se ocupam do contexto da descoberta: “Para esses últimos (Feyerabend é um exemplo) a própria divisão dos contextos é irrelevante e artificial. Khun duvida da validade da distinção”.[4]
            O trabalho de Khun, ao mostrar que a ciência caminha ao passo das revoluções e não da evolução continuada, valoriza os aspectos sociais e principalmente históricos da ciência. Sua obra pertence ao contexto da descoberta.
            Kuhn, aliás, reclama da pouca atenção dada à história da ciência: “Se a história da ciência fosse vista como algo mais que um repositório para anedotas e cronologias, poderia produzir uma transformação decisiva na imagem da ciência que atualmente nos domina”.[5]
            Da mesma forma, a imaginação não é valorizada pela ciência que, com isso, corre o risco de parecer ingrata. Segundo Edgar Morin,
A imaginação, a iluminação, a criação sem as quais o progresso das ciências não teria sido possível, só entravam na ciência às escondidas: não eram logicamente assimiláveis e eram sempre epistemologicamente condenáveis. Falava-se delas nas biografias dos grandes sábios, mas nunca nos manuais e tratados, de que no entanto a sombria compilação, como camadas subterrâneas do carvão, eram constituída pela fossilização e pela compreensão de que, em primeiro lugar, tinham sido fantasias, hipóteses, proliferação de idéias, invenções, descobertas.[6]
            Portanto, a ciência e a imaginação estão intimamente ligados:
Vemos, aliás, logo que se pensa na investigação, com suas atividades de espírito, com o papel da imaginação, toma-se consciência de que as noções de arte e ciência, que se opõem na ideologia dominante, têm alguma coisa em comum.[7]
            Essa relação ocorre em duas vias. Por um lado o cientista é influenciado pela sociedade na qual vive, inclusive pela concepção dos artistas. Por outro lado, ele influencia a sociedade. Essa influência se dá em vários aspectos. Não só na teoria, na hipótese, como na observação. Gerald Fourez explica que
existe também, anterior a todo objeto, uma estrutura organizada do mundo no qual se inserem objetos. É o que os sociólogos Peter Berger & Thomas Luckman (1978) chamaram de a “construção social da realidade” . Por isso, entendem essa organização do universo ligada a uma determinada cultura, seja a de uma tribo de pescadores da Amazônia, seja a nossa cultura industrial, e que situa a visão de um tal modo que cada uma das coisas pode encontrar seu lugar (ou antes) , que determina o que serão os objetos.[8]
            Portanto, o cientista deixa-se, ainda que inconscientemente, influenciar-se pelo seu meio social. Suas teorias são sugeridas pela arte e a visão do mundo que determina os objetos também é constantemente influenciada pela arte.
            Voltando à imaginação, ela interfere na metodologia científica ainda em dois aspectos: na construção de modelos e nas hipóteses.
            O real jamais é apreendido exatamente como ele é. Segundo Isaac Epstein:
A percepção e inteligibilidade são graus sucessivos de abstração através dos quais nos damos conta da realidade. Percebemos um objeto ou entendemos uma lei, e estes contêm sempre menos variedade ou informação do que o estado mais desordenado do qual esse objeto ou esta lei são abstraídos. [9]
            Portanto, a percepção se dá sempre através de modelos e usamos a imaginação para condensar essa informação. Alguns argumentariam que esse processo de criação de modelos é racional. Este é, sem dúvida, um ponto de vista equivocado. Isso porque o processo de construção ocorre diariamente, a todo instante, e não é um processo consciente. O tempo todo estamos construindo modelos para perceber a realidade que nos cerca. Instada a visualizar mentalmente um pássaro, pouquíssimas pessoas se lembrarão de um pássaro específico ou de detalhes. A maioria se lembrará de uma silhueta voadora. E, provavelmente, ninguém se lembrará de um pinquim. Se usássemos a razão a cada modelo que construímos, nossa percepção seria extremamente lenta. A imaginação e os sentimentos são muito mais importantes nesse processo.
            Segundo Fourez, para observar,
é preciso sempre relacionar aquilo que se vê com as noções que já se possuía anteriormente. Uma observação é uma interpretação: é integrar uma certa visão na representação teórica que fazemos da realidade (...) Para dizê-lo ainda de outro modo, observar é fornecer um modelo teórico daquilo que se vê, utilizando as representações teóricas de que se dispunha.[10]
            Depois de observar, o cientista precisa explicar o que viu, ou antever o que não viu. Para isso ele usa as hipóteses, uma ferramenta essencialmente imaginativa. Usemos como exemplo a paleontologia. Sendo uma ciência que estuda animais extintos, especula-se como eles seriam a partir dos indícios encontrados. Assim, por uma série de características dos ossos encontrados, sabe-se que o deinonychus era um predador. Como os ossos foram encontrados numa região de floresta, especula-se que sua pele fosse pintada para se confundir com as folhas e sombras.[11]
            Já o diplodochus era herbívoro e, portanto, não precisava ter camuflagem para caça. Por outro lado, seu tamanho afastava os predadores. Daí especula-se que sua pele não precisaria de camuflagem sendo, portanto, marron-escuro.
            O fato de serem baseadas em evidências científicas reais não diminui o caráter de imaginação das hipóteses. O caso da paleontologia é exemplar porque nada realmente garante que os dinossauros eram como imaginam os cientistas. Mas há outros exemplos. O melhor  deles, talvez, se relacione com a descoberta de Mercúrio.
O astrônomo Urbain Joseph Le Verrier estava intrigado com perturbações na órbita de Urano. Segundo o paradigma newtoniano, essas perturbações deveriam ser provocadas por planetas vizinhos, no caso Júpiter e Saturno. Mas os cálculos não davam apoio a essa hipótese. Deveria haver um terceiro agente provocando aquela perturbação:
Não importava que jamais tivesse sido observado: deveria haver um terceiro astro causando perturbações na órbita de Urano (...) Conhecendo qual a margem daquela perturbação que permanecia inexplicada, calcula as características do corpo que deveria necessariamente causá-las.  Calcula não só a massa do astro, como também sua distância de Urano, e até mesmo a posição que deveria ocupar em determinado momento.[12]
            De posse desses dados sobre a posição do astro no céu, Le Verrier escreveu ao astrônomo alemão Johan Gottfried Gallle pedindo que verificasse a região do firmamento onde o novo planeta deveria aparecer. Galle, que possuía um telescópio mais potente que o do seu colega francês, não teve dificuldades em visualizar o astro de cor esverdeada, que ganharia o nome de Netuno, em homenagem ao deus romano do mar.
            Pode-se argumentar que a hipótese de Le Verrier estava calcada no paradigma de Newton, o que é verdade. Não houvesse esse paradigma, o astrônomo não teria nem mesmo formulado a hipótese da existência do novo planeta. Entretanto, o que advoga a favor da imaginação é que o paradigma não levava, necessariamente, a essa hipótese. Le Verrier poderia ter ignorado o problema, ou se conformado com a idéia de que Júpiter e Saturno estavam alterando a órbita de Urano. Ao especular que havia mais um planeta no sistema solar, ele estava usando a imaginação. Isso porque a imaginação é a faculdade que usamos, entre outras coisas, para completar dados da realidade que não estão disponíveis.
            Assim, a faculdade que o cientista usa ao formular uma hipótese é a mesma que usamos ao nos perguntarmos: “Se houver vida em outro planeta (e provavelmente há), como ela seria?”. É, portanto, uma pergunta do mesmo gênero que Adous Huxley se fez ao escrever Admirável Mundo Novo: “Como seria o mundo se ciência fosse usada para condicionar o homem e transformar nossa sociedade numa sociedade de formigas, na qual cada um exerce um função delimitada?”.
            A outra via da relação entre ciência e imaginação é o fato de que ciência influencia a arte. A arte, por sua vez, retribui essa influência levando a ciência ao povo e tornando populares as teses científicas. Esse processo é particularmente visível a partir do início do século XIX, quando os avanços científicos começam a acontecer num rítmo acelerado e a ciência, cada vez mais, entra no cotidiano das pessoas.
            Não é por acaso que Isaac Asimov situa o início da ficção científica no livro Frankstein ou o Moderno Prometeu, de Mary Shelley, publicado em 1818.
            A origem do livro situa-se em 1771, quando o anatomista italiano Luigi Galvani descobriu que as pernas de uma rã que tivesse sido dissecada se contraiam desenfreadamente quando submetidas a uma corrente elétrica.
A consequência de tudo isso foi que a eletricidade, cujo estudo havia começado a tomar impulso somente na metade anterior do século, encerrava alguns mistérios, mas também indicava que ela tinha uma íntima relação com a vida. Os homens começavam até mesmo a especular sobre a possibilidade de criação artificial da vida.[13]
            Em 1816, Lord Byron, que havia fugido da Inglaterra, encontrava-se em um castelo à beira do lago de Genebra. Junto com ele, vários intelectuais, entre eles Percy Shelley e sua amante Mary, com a qual se casaria no final daquele ano.
Byron mostrava-se interessado, como diletante, nos assuntos da ciência, e conhecia os trabalhos de Galvani e Volta. Pareceu ao grupo, enquanto todos se entretinham a palestrar, que seria uma idéia excelente escrever romances científicos.[14]
            Nenhum deles produziu grande coisa, exceto Mary. Ela imaginou um doutor, Frankstein, anatomista como Galvani, criando um ser artificial ao infundir vida a um corpo inteiro com o auxílio da eletricidade. Corpos mortos que ganhavam vida não eram novidade. O folclore judeu fala do rabino Low, de Praga, que teria dado vida a um Golem. No fim da Idade Média também eram comuns histórias de vampiros – pessoas mortas que voltavam do túmulo para sugar o sangue dos vivos. Entretanto, essa era a primeira vez que se utilizava a ciência para dar vida a um corpo morto: “Mary Shelley foi a primeira a valer-se de uma descoberta da ciência, que levou adiante, ao seu extremo lógico. Isso é que torna Frankstein o primeiro romance científico”.[15]

            O primeiro aspecto importante de Frankstein foi tornar acessível ao público um conhecimento científico que, até então, era reservado apenas aos iniciados. Outro aspecto, que exploraremos mais no capítulo seguinte, é o da antecipação. A arte constantemente antecipou descobertas científicas e isso é particularmente verdadeiro em Frankstein, embora essa antecipação não se desse exatamente como no romance de Sheley. Mas, de fato, a criação de vida artificial se daria com a ajuda da eletricidade, como se viu no episódio da ovelha Dolly.
            Como se sabe, Dolly é resultado da união do núcleo de uma célula mamária de uma ovelha com o óvulo de uma outra, cujo núcleo havia sido extirpado. “Como na história Frankstein, de Mary Shelley a fusão artificial só foi possível graças a uma descarga elétrica”.[16]
            Embora não seja nosso objetivo delinear a história da ficção científica literária, mais alguns exemplos fazem-se necessários para esclarecer alguns aspectos da relação ciência-arte; aspectos esses que nos serão úteis posteriormente. O primeiro exemplo refere-se ao escritor norte-americano Edgar Allan Poe.
É tão habitual olhá-lo como um poeta lírico e romântico que, na maior parte, suas interessantes especulações a respeito do futuro e de suas delineações, sua certeza das mudanças a serem efetuadas na sociedade pelo progresso médico e mecânico e sua dissidência da prevalecente economia e política de seu tempo têm sido desdenhadas e esquecidas.[17]
            Ao contrário de Shelley, Poe estava interessado em outra área da ciência e da técnica: “Poe vivia caracteristicamente obsessionado com a possibilidade de vôo humano, e convencido disso. O balão dirigível vivia bastante em seu pensamento”[18]
            Esse interesse deu origem à novela As Aventuras de Hans Pffall. Nela, Poe faz seu personagem chegar à Lua com a ajuda de um balão:
Renovando o velho tema de Cirano de Bergerac, Poe nos conta a aventura sucedida a um holandês, um tal de Hans Pffall, que arma um balão e lança-se aos espaços, mas voando muito alto cai na faixa de atração da Lua e vai lá parar. [19]
            Poe escreveu, ainda, duas aventuras ambientadas em balões, uma delas, A Balela do Balão, é composta de notícias falsas, implantadas por Poe na imprensa de Nova York sobre um dirigível que teria atravessado o Atlântico.
Essas viagens fantásticas, todas tendo como meio de locomoção balões dirigíveis, mostram não só o interesse de Poe pelas novas descobertas mecânicas, mas sua intuição de que, mais dia, menos dia, o homem estaria senhor dos ares e fazendo mesmo viagens a outros planetas. [20]

            O exemplo mais completo da relação ciência-arte talvez seja o escritor francês Júlio Verne. Ele realizou um dos mais extensos trabalhos de vulgarização científica numa época em que a ciência era desconhecida da maior parte da população e não tinha a aceitação de que hoje goza:
Na época em que Júlio Verne nasceu, a ciência ainda não havia se libertado do domínio mágico da Idade Média. A ciência, quando ele ainda era um jovem escritor em Paris, não passava de uma curiosidade de laboratório, cujos discípulos arriscavam-se aos sarcarmos dos amigos e dos vizinhos céticos. Todavia, ele realizou nos seus livros um tão excelente trabalho de vulgarização científica que seus leitores açodamente se tornaram pseu-químicos, astrônomos e até aviadores quase sem o querer.[21]
            Verne publicou seu primeiro romance científico, Cinco Semanas Num Balão, em 1863. Há apenas cinco anos havia sido publicado o livro A Origem das Espécies, de Darwin. Há pouco tempo Pasteur divulgara suas descobertas, que derrubavam a teoria da geração espontânea e lançava a teoria dos vermes como causadores de doenças. As descobertas científicas ocorriam numa sucessão cada vez mais rápida. Entretanto, o povo, o cidadão comum, ainda via a ciência como uma desconhecida. Segundo George Waltz:
A própria palavra ciência era relativamente nova em 1868. A guerra entre ciência e religião agitava-se no seu período de maior furor e o trabalho dos cientistas estava confinado a um mundo à parte (...) a ciência estava além do alcance do homem que pisava as tortuosas ruas dos mundo. Pouco havia sido escrito que ele entendesse, ou de um modo que o tentase à leitura. Era costume, naquele tempo, deixar a ciência aos inventores e químicos com suas máquinas esquisitas e estranhos tubos e recipientes.[22]
            Interessante notar que nos livros do autor de Vinte Mil Léguas Submarinas a ciência não aparece apenas como um apoio da narrativa. Verne profetiza um mundo onde ciência e técnica fazem parte do dia-a-dia do cidadão comum. Benitez defende que Verne foi influenciado pelo samsionismo[23], em especial graças ao trabalho do seu conterrâneo Doutor Geupin:
A formação enciclopédica desse conterrâneo deve ter influenciado poderosamente o inquieto e sempre curioso espírito de Verne. Geupin chegou a escrever uma história de Nantes e uma gigantesca obra de mil páginas, publicada em 1854 com o título de Filosofia do Século XIX, estudo enciclopédico sobre o mundo e a humanidade. Repassando tudo que na época se conhecia de física, química, botânica, zoologia e mecânica, Geupin, fazendo-se eco das idéias de Fourier, manifesta sua fé no futuro das máquinas e da eletricidade apostando sempre na benéfica exploração dos recursos naturais do Planeta.[24]
            Não há dúvida nenhuma, no entanto, de que primeiro romance de Verne, Cinco Semanas num Balão, foi baseado em fatos científicos da época. Verne era colaborador da revista Museu das Famílias, para a qual escrevia textos de divulgação científica. Esse trabalho o obrigava a passar longas horas na Biblioteca Nacional, consultando livros, revistas e toda sorte de documentos da época. Além disso, o escritor era amigo dos irmãos Jacques Arago (explorador), Étiene Arago (literato), François Arago (físico e astrônomo de renome internacional) e de Nadar[25], o entusiasta do vôo e do mais pesado que o ar.
            O relacionamento entre o artista e a ciência aparece-nos muito clara na relação de amizade Verne-Nadar: o artista é influenciado pela sociedade na qual vive e pelo círculo intelectual que frequenta. Mesmo um autor considerado “profético”, como Verne, nada mais fez do que concretizar em palavras o que já estava “no ar”, o que o avanço técnico e científico de uma certa época permitiriam imaginar, levando a idéia ao seu extremo lógico. O balão de Cinco Semanas, assim como o aparelho voador de Robur, o Conquistador, eram nada mais que a concretização literária dos sonhos de Nadar. 

            O primeiro romance de Verne era profundamente fundamentado nos avanços científicos e descobertas da época:
Em Cinco Semanas Num Balão, Júlio Verne, com o auxílio de Hetzel, introduzira um novo tipo de novela - uma forma diferente de contar história, um misto de ficção e realidade, no intuito de criar um pretexto equilibrado para aventuras fascinantes. Era a mesma fórmula que Júlio criara para Un Voyage em Ballon, um conto quase fantástico que se tornava plausível mercê de fatos insofismáveis. Qualquer itinerário serviria para o Vitória, mas a viagem tornara-se mais real porque acompanhava claramente o percurso da expedição de 1850 levada a cabo pelos exploradores Richard Francis Burton e John Hamming Speke. Quanto à construção do balão, Júlio Verne tornara-a perfeitamente praticável com seu complicado fogão que provocava a expansão do hidrogênio por meio de aquecimento, fazendo o aparelho elevar-se sem ser necessário sacrificar lastro. A idéia do balão duplo foi tomada de Mensnier de Laplace e Nadar; a bateria elétrica viera das experiências  de Albert Wilhehn Bursen e a luz brilhante do arco improvida para arrancar o desgraçado missionário lazarista às torturas infligidas pelos selvagens africanos viera dos manuscritos de Humphry Javoy.[26]
            Mas, veja-se, ao balizar o seu romance em descobertas científicas, Verne não estava simplesmente divulgando fatos neutros e objetivos, ele estava também defendendo pontos de vista a respeito desses assuntos. Ele estava advogando as idéias de certas correntes de pensamento, no caso, aquela que defendia a possibilidade de vôo do mais pesado que o ar. Tanto que, em 1863,  o mesmo ano do lançamento de seu livro, ele participou, como crítico, da Sociedade de Fomento Para a Locomoção Aérea Através de Aparelhos Mais Pesados do que o Ar, encabeçada por Nadar.
            Quando do acidente com o Geant, Verne publicou um artigo no Museu das Famílias defendendo Nadar e anunciando o não muito distante triunfo do helicóptero.
            A importância de Verne não se deve tanto às suas profecias, mas às noções e pontos de vista que ajudou a divulgar. Waltz parece concordar:
Dizer que Júlio Verne fez contribuições efetivas às invenções aeronáuticas seria errôneo. Ele não as fez. Verne era um escritor, não um inventor. A tarefa a que se obrigava era popularizar uma noção - uma noção que era a mesma de Da Vinci, de Sir George Cayley, de Stringfelow e de Henson, a noção de que um dia qualquer deveria encher os céus com os grandes transportes prateados.[27]
            E chegamos, aqui, ao outro aspecto no qual a obra de Júlio Verne ganha importância. O escritor, que se deixou influenciar por cientistas e fundamentou seus livros no conhecimento científico da época, influenciou também ele os cientistas e técnicos:
Quando Júlio Verne escreveu Vinte Mil Léguas Submarinas, não poderia supor que suas palavras orientariam, um dia qualquer, outro pioneiro do campo das viagens submarinas. O livro fora publicado pelo editor Hetzel em 1870 e seis anos mais tarde, quando Verne estava às voltas com as infindáveis provas tipográficas de Miguel Strogoff, um menino de dez anos, a três mil milhas de distância, do outro lado do Atlântico, gazeava as aulas de uma pequenina escola de New Jersey para ler e reler as histórias da viagem do capitão Nemo. Nas viagens do Náutilus o jovem encontrava uma fascinação tal que o levou a correr atrás de todo livro que pudesse encontrar sobre viagens submarinas. Vinte e dois anos mais tarde lutava contra as vagas ao largo de Sandy Hook, a bordo do submarino Argonaut. O jovem era Sim Lake e o seu Argonaut provou ser o primeiro submarino a navegar com êxito em alto mar. [28]
            Até o nosso Santos Dumont recebeu influência de Júlio Verne, como, aliás, declara no seu livro Meus Dirigíveis:
o meu autor favorito era Júlio Verne. A saudável imaginação desse escritor verdadeiramente grande, trabalhando de um modo verdadeiramente grande com as imutáveis leis da matéria, fascinava minha infância. Em suas audaciosas concepções eu via, não tendo nunca a menor dúvida, a mecânica e a ciência das idades futuras, quando o homem se ergueria, graças ao seu gênio, à alturas de um semi-deus.[29]
            Verne influenciou ainda o Almirante Richard Byrd que, ao sobrevoar o polo norte, teria dito: “É Júlio Verne que me guia”. E, ainda, outros cientistas e exploradores:
Willian Beebe, dentro de sua bolsa de aço, a “batisfera”, explorou as profundidades do mar, mas foi Júlio Verne, com as sua Vinte Mil Léguas Submarinas quem alimentou o seu desejo de ver os mistérios que jaziam sob as águas. Norbert Casteret explorou as mais profundas cavernas da Europa com o intuito de descobrir os estranhos cursos d’água que formam a rede de rios subterrâneos. Mas, além do apelo de cada aventura, está o enredo de seu livro favorito - Viagem Ao Centro da Terra. [30]
            Talvez o autor clássico mais famoso depois de Verne seja Wells. No artigo “H.G.Wells”, publicado no fanzine Notícias do Fim do Nada, Roberto de Souza Causo explica as origens científicas do escritor inglês:
Quando jovem, Wells ganhou bolsa de estudos para uma escola de ciências londrina e estudou biologia com T.H.Huxley, o maior defensor das idéias evolucionárias de Darwin no século XIX. A formação é fundamental na carreira de Wells como jornalista científico. Simultaneamente passa a vender contos para jornais e publicações que, não obstante, ele desprezava. Seus romances também apareccem serializados nesses periódicos, sendo o primeiro deles A Máquina do Tempo, onde se evidencia a perspectiva evolucionária: o Viajante do Tempo descobre que, assim como outras espécies animais, o ser humano é um ser biológico e não só histórico, destinado ao declínio eventual.[31]
            Segundo Causo, Wells enveredou pelo chamado “Darwinismo Social”, doutrina que daria origem à eugenia, chegando a defender os seus preceitos em artigos de não-ficção: “Tornou-se evidente que grandes massas da população humana são, no seu todo, inferiores a outras massas no seu direito ao futuro, que não se pode dar oportunidades a ele ou confiar-lhes o poder que se confia aos povos superiores”.[32]
            Se, por um lado, Wells se alinhou a correntes de pensamento duvidosas, ele foi também um dos primeiros a denunciar os aspectos potencialmente nocivos da ciência, discutindo a questão da ética. Isso em A Ilha do Doutor Moureau. No livro, um  biólogo chamado Prendick vai parar numa ilha governada pelo doutor Moureau, um fisiologista famoso que tivera de fugir de Londres quando descobriu-se que ele vivissecava animais. Utilizando o mesmo processo de vivissecação, Moureau povoa sua ilha de seres humanos feitos a partir de enxertos de outros animais. Moureau explica a Prendick seu processo de criação de seres humanos:
O senhor esquece tudo quanto um hábil vivisseccionista pode fazer com os seres vivos - disse Moureau. Da minha parte só me admiro que tais coisas que fiz não tivessem sido feitas antes. Coisinhas de nada, o que chamamos cirurgia; amputações, ablações, excisões. O senhor sem dúvida sabe que o estrabismo pode ser corrigido com o escalpelo. No caso das excisões o senhor também sabe que todas as mudanças secundárias podem ser realizadas, mudanças de pigmento, alterações nas glândulas de secreção, modificações de paixões... o que viu são casos triviais de alterações. A cirurgia pode fazer coisa muito mais alta. [33]
            Assim, unindo partes de vários animais, Moureau consegue produzir uma caricatura de ser humano. Mas a principal alteração é feita no cérebro. Moureau retira do cérebro do animal todas aquelas partes que poderiam fazê-lo voltar a se tornar uma fera. 

            Wells, entretanto, parecia prever que o cérebro, tendo uma de suas partes retiradas, é capaz de deslocar sua função para outra parte. Assim que Moureau morre, vítima de um puma que consegue fugir da vivissecação, os animais retornam aos seu estado natural. Os carnívoros voltam a comer carne, a preguiça começa a se pendurar nos galhos...
            Wells critica a insensibilidade de Moureau quanto à dor de suas vítimas. Sua principal critica, no entanto, relaciona-se à futilidade das experiências: “Apenas a curiosidade, a fúria louca de investigação sem objetivo”[34]
            Numa época como esta, em que a engenharia genética chega a um ponto em que tudo parece ser possível, a mensagem de Wells é mais moderna do que nunca.
            No campo das antecipações e das preocupações com os aspecto nocivos do desenvolvimento da ciência, o francês Albert Robida tem um papel destacado. No seu livro O Século XX, publicado na França, em 1883, Robida antecipou acertadamente diversos avanços técnicos e científicos, entre eles a televisão e o telefone:
“A televisão destruirá o teatro”. Pelo menos foi isso que previu Robida, quando escreveu que a Companhia Universal do Telefonoscópio Teatro, fundada em 1945, reuniria rapidamente 600 mil assinantes espalhados em todas as partes do mundo. Para eles, bastaria girar um botão e ver na tela o espetáculo de sua preferência. E mais ainda: “usando seu próprio telefone eles poderiam comunicar-se entre si e comentar as qualidades ou os defeitos do programa que assistiram”. Na verdade, Robida errou por apenas vinte anos. Foi em 1965 que entravam em serviço os satélites da rede intelsat, tornando possível a TV mundial.[35]
            Robida previu o tanque de guerra, o uso de helicópteros na guerra e os antibióticos: “Micróbios enfraquecidos (antibióticos) serão ministrados aos pacientes para forçar o seu organismo a lutar contra a doença[36].
            Previu também mudanças na imprensa provocadas pela incrementação de novas tecnologias:
Robida foi além, prevendo não apenas o crescimento da influência como também descrevendo minuciosamente os novos meios de divulgação de notícias que seriam comuns no século seguinte: um de seus desenhos mostra com minúcias o repórter de um importante jornal francês descrevendo pelo rádio o desenrolar de mais uma guerra na Ásia.[37]
            O escritor e ilustrador francês imaginou também o impacto social que as mudanças tecnológicas teriam. Um dos resultados, segundo Robida, seria a liberação feminina: “A mulher, libertada de suas responsabilidades caseiras, ganhará liberdade e direitos iguais aos dos homens[38]
            Se acerta, Robida também erra. Sua imagem política do futuro pode ser uma boa antecipação das distopias de Orwell, Huxley e Bradbury, mas não é plausível em termo de realidade:
O chefe de governo (...) será um autômato. E com um presidente mecânico, teremos estabilidade política. Esse robô governamental só funcionará quando acionado pelo menos por duas de três chaves entregues aos presidentes do Conselho de Ministros, da Câmara dos Deputados e do Senado. E quando isso acontecer, a máquina poderá julgar friamente o valor das leis propostas à nação.[39]
            Robida também erra ao prever o fim do teatro e outras profissões:
O pintor será uma delas, substituído pelo técnico que pinta quadros usando máquinas automáticas fotográficas (a atual foto por computador). O músico profissional será destronado pelas companhias radiofônicas que transmitirão concertos pelo rádio. E a industrialização dos alimentos dará um duro golpe nos restaurantes famosos.[40]
            Em outras palavras, Robida acerta muito porque também atira muito. E à esmo. Uma metáfora talvez nos seja útil para compreender a situação. Imaginemos um campo de tiro. Temos dois grupos de atiradores: de um lado os cientistas, do outro os artistas. O alvo, no entanto, está escondido. Os cientistas concentram seus disparos onde lhes foi dito que está o alvo (ou seja, eles seguem a orientação do paradigma). Já os artistas, em especial os imaginativos como Robida, atiram a esmo. Se o alvo estiver em um lugar diferente daquele apontado pelo paradigma, torna-se evidente que o segundo grupo terá muito mais chances de acertar (ainda que o paradigma esteja certo, os artistas não perdem as chances de acertar. Repito: eles atiram mais, em mais direções).
            Como conclusão deste tópico, percebemos que as primeiras obras de ficção científica estiveram quase sempre associadas a uma corrente de pensamento: Mary Shelley divulga as descobertas de Galvani; Verne advoga o mais pesado que o ar, Wells defende a eugenia. As obras desses autores não apresentam apenas uma divulgação de fatos científicos, mas uma tomada de posição em favor desta ou daquela corrente.
            Veremos, adiante, de que maneira o tema se comporta em uma nova mídia, essa típica dos século XX: as histórias em quadrinhos.
           


[1] GAJARDONI, Almyr. Carta ao Leitor. Superinteressante, ano 2, n#1. São Paulo, Abril, janeiro de 1988, p.4.
[2] REICHENBACH apud EPSTEIN, Isaac. Revoluções Científicas. São Paulo, Ática, p. 40.
[3] HEMPEL apud EPSTEIN, Ibid, p. 42
[4]Ibid, 43.
[5]Kuhn, Thomas. A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo, Perspectiva, 1992, p. 19.
[6]MORIN, Edgar. Intodução ao Pensamento Complexo. Lisboa, Instituto Piaget, 1995, p. 81.
[7]Ibid, p.
[8]FOUREZ, Gerárd. A Construção das Ciências, p. 48.
[9]EPSTEIN, Isaac. Teoria da Informação. São Paulo, Ática, 1986, p. 11.
[10]FOUREZ, op. cit, p. 42.
[11]ZANCHETTA, Maria Inês & FRANCO, Vera. A Nova Face dos Dinossauros in Superinteressante, ano 7, 7. São Paulo, Abril, 1993, p-p. 22-29
[12]Os Cientistas. São Paulo, Abril Cultural, 1972, p. 8.
[13]ASIMOV, Isaac. No Mundo da Ficção Científica. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1984, pp. 220-221.
[14]Ibid, p. 221
[15]Ibid, p. 221
[16]GODOY, Norton. Se Todos Fossem Iguais a Você. Istoé, 1431. São Paulo, Três, 1997, p. 84.
[17] ALLEN, Harvey. Israfael - Vida e Época de Edgar Allan Poe. Porto Alegre, Globo, 1945,p. 38
[18]Ibid, p. 38.
[19]MENDES, Oscar. Viagens Fantásticas - Nota Preliminar. POE, Edgar Allan. Ficção Completa, Poesias e Ensaios. Rio de Janeiro, Aguilar, 1965, p. 662.
[20]Ibid, p. 662
[21]WALTZ, George H. Vida de Júlio Verne - Biografia de uma Imaginação. Rio de Janeiro, José Olímpio, 1984, p. 22.
[22]Ibid, p. 30
[23]Abbagnano informa que o samsionismo é a doutrina originada das idéias do Conde Cláudio Henrique de Saint Simon (1760-1825), que postulava o advento de um mundo dominado pela ciência: “Saint Simon é o verdadeiro fundador do positivismo social, isto é, aquela doutrina que quer fazer da ciência, e da filosofia baseada na ciência, o fundamento da reorganização radical de nossa sociedade humana. O samsionismo contribuiu para formar a consciência da importância social e espiritual das conquistas da ciência e da técnica, e incentivou poderosamente o desenvolvimento industrial: estradas de ferro, bancos, indústrias e até as idéias dos canais de Suez e do Panamá couberam aos samsionistas”(ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia.São Paulo, Mestre Jou, 1970).
[24]BENITEZ, J. J. Eu, Júlio Verne. São Paulo, Mercuryo, 1990, p. 130.
[25]Nadar,pseudônimo de Gaspar Félix Tournachou. Nasceu em Paris, 1820.Estudou medicina e tomou parte da revolução de 1848. Premido por dificuldades financeiras, quando seu pai perdeu a fortuna, tornou-se fotógrafo, por volta de 1850 (...) O atelier de Nadar tornou-se logo famoso entre as mais altas classes da  sociedade que pagava ao artista somas consideráveis pelos seus trabalhos. Gastou todo o seu dinheiro na construção do Geant. Devem-se a Nadar as primeiras fotografias aéreas apanhadas em 1858” (Waltz, op. cit, p. 99)
[26]Ibid, p. 117-118.
[27]Ibid, p. 235.
[28]Ibid, p. 231
[29]SANTOS DUMOND apud Waltz, op. cit., p. 234.
[30]WALTZ, op. cit., p. 237.
[31]CAUSO, Roberto de Souza. H.G.Wells  in Notícias do Fim do Nada, XXXI, Porto Alegre, outubro/dezembro de  1996, p. 19.
[32]WELLS apud CAUSO, op. cit., p. 20.
[33]WELLS, H. G. A Ilha das Almas Selvagens. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1962, p. 75.
[34]Ibid, p. 99
[35]PEREIRA, Roberto. O Inventor do Futuro in Planeta, 9. São Paulo, Três, maio de 1973, p. 95.
[36]Robida apud Ibid, p. 99.
[37]Ibid, p. 95.
[38]Robida apud Ibid, p. 98.
[39]Robida apud Ibid, p. 95.
[40]Robida apud Ibid, p. 98.

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