Capítulo 6 - A complexidade em escalas



            Este capítulo é uma analise da primeira parte do quinto volume da edição brasileira de Watchmen (correspondente ao nono volume da edição americana).[1]
A capa da revista apresenta um plano detalhe de um vidro de Nostalgia solto no espaço, tendo as estrelas ao fundo e espirrando um pouco de líquido, o que sugere movimento rotativo. O título Watchmen vem na vertical, no canto esquerdo da página. Abaixo do título, temos um relógio que marca cinco para meia-noite. Já nos referimos anteriormente à importância dos relógios em Watchmen, inclusive como figuras semelhantes a fractais. Aqui ele representa o tempo da humanidade, que está se esgotando (fica claro que algo, provavelmente uma guerra nuclear, vai acontecer à meia-noite)
            O perfume, tema da capa, parece representar Laurie, na medida em que o bottton sorridente (capa do volume 1 da edição brasileira) representa o Comediante, o símbolo nuclear (capa do volume 2) representa o Dr. Manhattan e os óculos com formato de olho de coruja (capa do volume 4) representam Nite Owl.

PÁGINA 1

O primeiro quadrinho é praticamente a mesma ilustração da capa, com menos detalhes. Observamos aqui a repetição de imagens que caracteriza os fractais. Para a artista plástica Faiga Ostrower, os fractais não são obras de arte, pois “correspondem a cálculos matemáticos e não vivências pessoais”.[2]. Na opnião da artista, os fractais deveriam ter um conteúdo emocional para serem considerados arte. Ou seja, uma obra que usasse a técnica de auto-semelhança dos fractais, mas que representasse um conteúdo emocional, seria arte. É isso que Moore e Gibbons fazem em Watchmen. Como já foi dito anteriormente, todos os capítulos de Watchmen começam e terminam com imagens semelhantes. Da mesma forma, a obra começa e termina com a imagem do botton sorridente manchado de vermelho no olho direito.
            Nos quadros 2 e 3 a imagem representa a visão de Laurie. Em primeiro plano, temos o Dr. Manhattan e, em segundo plano, Daniel (Nite Owl). Laurie está explicando a Dan que Manhattan quer levá-la até Marte para discutirem o destino do mundo.
            No quadro 4 a imagem representa o início do teleporte, do ponto de vista de Laurie. A figura começa normal e vai sendo tomada por barras escuras da esquerda para a direita. É um recurso gráfico típico dos quadrinhos, usado aqui para simular movimento, da mesma maneira que as linhas cinéticas. Em segundo plano, à esquerda do quadro, temos um relógio, representando a repetição de imagens semelhantes que caracteriza os fractais.
            O quadro 5 é um quadro negro. Abaixo dele temos o título da história, Uma luz nas trevas, que é retirado da frase de Jung citada ao final do capítulo: “Pelo que posso perceber, o único propósito da existência humana é acender uma luz nas trevas da mera sobrevivência”. Esse título, vindo abaixo do quadro negro, acaba ganhando um aspecto metafórico importante e, de certa forma, resume aquilo que Moore chama de “Idéia”da história.[3]
            Na introdução já foi abordado o tema da concepção religiosa do caos. A maioria das religiões relaciona as trevas, o vazio, com o caos. Não por acaso, o Deus cristão diz: “Faça-se luz”, quando da criação. O objetivo das religiões tem sido justamente demonstrar uma ordem nesse caos. A ciência, embora seja bem diferente da religião, sempre buscou o mesmo: encontrar ordem no caos. De Aristóteles dividindo os animais em classes e subclasses a Newton formulando a lei da gravidade, todos os empreendimentos científicos importantes foram tentativas de encontrar um padrão na desordem - luz nas trevas. O título deixa claro que esse é o tema da história.


PÁGINA 2

            Nos quadros 1 e 2 temos uma imagem semelhante àquele quarto quadrinho da primeira página. Só que agora as barras escuras vão diminuindo da esquerda para a direita, de acordo com o fluxo de leitura, até mostrar a cena completamente sem barras. Ao fundo, vê-se a superfície de Marte.
            Nos quadros seguintes, Laurie sufoca com a falta de oxigênio e despenca morro abaixo.

PÁGINA  3

            O primeiro quadrinho mostra o mesmo vidro de perfume que observamos na página 1, agora mais avançado em sua queda. À essa altura fica óbvio que essa cena não faz parte do fluxo normal de tempo, representando, provavelmente, um evento futuro. No quadro 8 temos uma visão subjetiva, representando o ponto de vista de Laurie. Ela estende as mãos para o Dr. Manhattan, que aparece num azul mais escuro que o normal. Dessa forma, o colorista John Higgins mostra, de maneira subliminar, o sufocamento de Laurie.
            A cor do Dr. Manhattan acaba sendo um detalhe importante. Para os idianos, o azul é a cor característica de Krishna, sendo, por tanto, associada com a divindade. Flávio Calazans explica a significação antropológica dessa cor:
Conforme as culturas vão se civilizando, urbanizando e perdendo o contato com a natureza, vão surgindo as cores frias como o verde (535 nm), azul (460 nm) e violeta (400 nm) (...) Isto indica um padrão cultural de percepção das cores que cresce, evolui historicamente do vermelho para o azul. O ocidente é vermelho e o Oriente é azul. Dez mil anos antes de Cristo a arte egípcia já empregava o azul, e os egípcios eram mais místicos que os gregos com seus deuses antropomórficos.[4]
            A cor azul é, portanto, um arquétipo que representa a perfeição, a divindade. Ao usarem essa cor em seus personagens, os autores estão associando-o subliminarmente a Deus. Seus poderes, que beiram a onipotência e a onisciência, reforçam essa associação.



PÁGINA  4

Temos aqui 3 quadros, que desembocam num maior, no qual aparece o castelo de cristal criado a partir da curva de Koch, como foi demonstrado nos capítulos anteriores.

PÁGINA  5

            Moore começa  jorrar texto pela página, no caso 132 palavras, retirando-se artigos e preposições. Um número bem maior que o dos quadrinhos normais. Além disso, os nove quadrinhos, os dois níveis de ação e uso da cor com significação (como no caso do azul para o Dr. Manhattan) fazem com que a quantidade de informações transmitidas em cada página seja enorme.
            A discussão sobre o destino relaciona-se com o conceito de inteligência laplaciana. Sabendo como o universo funciona e qual o fluxo do destino, Manhattan não se sente capaz de alterar qualquer coisa. Ele apenas segue o fluxo dos acontecimentos: “Tudo é pré-ordenado, até minhas respostas”. Uma vez que tudo é pré-ordenado, resta apenas seguir o fluxo.

PÁGINA 6

            Novamente aqui a discussão sobre pré-destinação e tempo. Para o Dr. Manhattan, assim como para a inteligência laplaciana, nem o futuro nem o passado guardam segredos. A partir do quadro quatro temos, surgindo do chão, uma mesa com duas cadeiras, uma jarra e um copo. Como num fractal, as cadeiras, o copo e a jarra guardam semelhança com o todo, no caso, o castelo. No quadro sete vemos um castelo em miniatura dentro de uma bola de vidro. Embora ele não seja uma réplica do castelo de Manhattan, fica óbvia, na história, a relação entre os dois. Em certo sentido, ele é semelhante ao castelo maior. Mesmo num fractal, as partes pequenas não são exatamente iguais ao todo, mas semelhantes. Com isso fica evidenciada a preocupação dos autores de injetar na história formas construídas à semelhança dos fractais.

PÁGINA 7

            Temos, aqui, a repetição da cena com o castelo em miniatura. Esse aspecto da constante repetição dos fractais é salientado por Bill Sienkiwcz, desenhista de Big Numbers: “Você entra visualmente numa equação fractal dentro de um computador como você entra na concha do Náutilus. Você continua entrando e as coisas se repetem”.[5]

PÁGINA 8

            Novamente a repetição do castelo em miniatura, agora numa evidente comparação com o vidro de perfume Nostalgia. Quando Laurie revela que está dormindo com Daniel (Nite Owl), Manhattan responde simplesmente:
Eu disse muitas vezes, que você era o meu único elo com o mundo. Quando você me deixou, eu parti. Isso não lhe diz nada? Agora fui substituído, e o elo se partiu. Não vê a futilidade... de me pedir para salvar um mundo com o qual não tenho nenhuma ligação? [6]
            Com isso, Moore demonstra a desumanização da ciência. Ela perdeu o seu elo com o mundo, ou seja, o humanismo. No universo visto como um relógio da concepção laplaciana, o ser humano é apenas mais uma engrenagem. Mais à frente, Manhattan diz que o universo nem mesmo notará caso a humanidade seja destruída.

PÁGINAS  9 - 10

            Nessas páginas, Manhattan reafirma sua frieza laplaciana: “Para mim, este mundo vermelho é mais importante que o seu mundo azul”.[7] No quarto quadro, que ocupa dois terços da página nove, vemos o castelo em toda a sua extensão. O conjunto apresenta a simetria característica dos fractais. A parte de cima é simétrica à de baixo. O lado esquerdo é simétrico ao direito.

PÁGINA 11

            Nesta página há uma referência ao livro Sob a Máscara, de Hollis Mason, o antigo Nite Owl. No livro, Mason revela que o Comediante tentara estuprar a mãe de Laurie:
Em 1940, após uma reunião, ele tentou estuprar Sally Jupiter na sala de troféus dos Minutemen. Ele deixou o grupo pouco depois, por consenso mútuo, e com o mínimo de publicidade. Schexnayder persuadiu Sally a não lançar acusação sobre o Comediante para não prejudicar a boa imagem do grupo, e ela acabou concordando.[8]

PÁGINA  12

            Aqui temos a repetição da cena do perfume. Interessante notar a ação em dois planos, que aumenta o quantidade de informações por quadrinho. É um recurso semelhante ao efeito de profundidade usado por Orson Wells em Cidadão Kane.

PÁGINA 13

            Moore volta a tocar no assunto da frieza da inteligência laplaciana. Para Manhattan, a existência de vida não é importante: “Marte leva sua vida com perfeição, sem um microorganismo sequer. Veja. Estamos passando pelo polo sul. Nenhuma vida. Contudo, degraus de quase trinta metros de altura formam gigantescas ondulações”.[9]

PÁGINA 14

            Aqui temos uma visão dos desfiladeiros marcianos chamados por Manhattan de formação caótica. Ele está profundamente interessado na geometria desse acidente geográfico: “A vida pode ter florescido aqui, mas Marte não optou por ela. Escolheu isto”.[10]
            Para Manhattan, em comparação com os fenômenos físicos, a vida humana é breve e previsível. Ela não apresenta surpresas. Laurie argumenta que sua vida também adquiriu uma formação caótica e se lembra da reunião do grupo anti-crime, organizada pelo Capitão Metrópolis em 1967. Essa reunião é um efeito borboleta para vários personagens de Watchmen, inclusive para Laurie, embora não pela mesma razão. Laurie, ao contrário de Ozimandias, não percebe, na época, que o mundo está à beira da destruição. Sua principal preocupação parece ser o interesse amoroso por Manhattan.

PÁGINA 15

            Nesta página, Laurie se encontra com o Comediante. Atenção para o sexto quadro. Os dois são vistos de perfil e Blake diz: “Você puxou a Sally em tudo... tudo... menos nos cabelos”. O desenhista e o colorista se esforçaram em mostrar, nesse quadro, a semelhança entre os cabelos dos dois: a mesma textura e a mesma cor. Dessa forma, os autores preparam o leitor, de forma subliminar, para a revelação que virá a seguir.

PÁGINA 16

            O quadrinho emblemático desta página é o segundo. Quando a mãe de Laurie repreende o Comedidante, ele responde simplesmente: “Jesus Cristo! A gente só tava papeando! Não se pode mais conversar com a próp... com a filha de uma velha amiga? O que pensa que eu sou?”.
            No oitavo quadrinho, temos novamente o vidro de Nostalgia. A posição do vidro sugere uma ampulheta. O tempo está se esgotando e a história se aproxima de seu clímax... o mundo logo será arrasado por uma catástrofes nuclear e a salvação do planeta depende das lembranças de Laurie.

PÁGINA 17

            A responsabilidade de Laurie fica ainda mais patente nesta página. Apesar de todos os indícios apontarem para o conflito nuclear, Manhattan não está abalado. Ao contrário, ele parece mais interessado no monte Olympus, que se aproxima.

PÁGINAS  18 - 19

            Aqui chegamos ao âmago da discussão do capítulo. Manhattan argumenta que o universo não irá notar, caso a humanidade desapareça:
Nós já passamos por isso antes, Laurie. Você defendia que a vida humana era mais importante que esta desolação, e eu não fiquei convencido. Você tentou comparar a incerteza de sua existência com o caos deste mundo... mas onde estão os pináculos para rivalizarem com o Olympus? Onde estão as profundezas para serem comparadas àqueles... Ah, estamos nos aproximando do Vale Marineris. Veja! Ele se estende por mais de cinco mil quilômetros. Enquanto uma parte recebe a luz do sol, na outra ainda é noite. As diferenças de temperatura provocam ventos frios, que formam oceanos de névoa ao longo de um desfiladeiro de mais de seis quilômetros de profundidade. O coração humano conhece abismos tão profundos?.[11]
            No livro Ciência com Consciência, Edgar Morin toca no mesmo assunto que Alan Moore. Para ele, a vida humana não é um sitema linear. Se, por um lado, é possível visualizar uma determinação em termos de sociedade, é praticamente impossível previsões a cerca do indivíduo:
Qualquer estatística comporta uma visão em dois níveis: ao nível dos indivíduos, é a eventualidade, as desordens, as colisões; ao nível das populações, são as regularidades, as probabilidades, as necessidades. bem entendido, o restabelecimento da ordem e da previsão ao nível estatístico não elimina a desordem e a imprevisibilidade ao nível individual. Podemos, por exemplo, fazer uma previsão estatística bastante rigorosa dos acidentes e das mortes nas estradas durante os fins-de-semana ou a festa de Páscoa. Mas ninguém pode dizer quem vai morrer durante esses acidentes da estrada, a começar por aqueles que são suas vítimas.[12]
            A sociedade é previsível apenas em termos de probabilidade. O indivíduo, por sua vez, é completamente indeterminado. Para Morin, sim, o coração conhece abismos tão profundos e impenetráveis quanto o Vale Marineris.

PÁGINA 20

            No quadro, o Comediante conversa com políticos sobre Watergate em tom de pilhéria. A vitória na guerra do Vietnã aumentara a popularidade de Nixon o suficiente para que ele não fosse afetado pelo escândalo de Watergate. A fala de Blake sugere que ele pode ter sido responsável pelo assassinato de kennedy. A festa que aparece no flash back é justamente para comemorar a vitória no Vietnã.
            Nos últimos quadros, Laurie acusa Blake de ter tentado violentar sua mãe. Há um detalhe interessante aqui: a posição dos personagens é praticamente a mesma da página 15. No quadro seis da página 15, o Comediante e Laurie são vistos de perfil. O Comediante segura o queixo de Laurie, como se a examinasse. Essa posição é repetida no quadro 8 da página 20. No quadro sete da página 15, o Comediante aparece fumando e Laurie em segundo plano. A mesma cena é repetida no quadro sete da página 20, com a diferença de que agora Blake está à esquerda e não à direita. Os autores tiveram essa preocupação para dar aos eventos a característica simétrica de um fractal.

PÁGINA 21

            Nessa página temos a repetição do quadro com perfume Nostalgia, reforçando o sentido de ampulheta. Laurie está desistindo de convencer Manhattan a salvar o planeta.

PÁGINA 22

            Temos, aqui, uma outra visão do castelo de Manhattan. Sob essa perspectiva ele se parece ainda mais com um relógio.
            A fala de Laurie acabará tendo uma conotação interessante, mais adiante: “Sabe de uma coisa? Você errou! Disse que eu ia acabar chorando... olhe só para mim... nenhuma lágrima! Sendo assim... talvez você esteja errado sobre muitas outras coisas”.[13]

PÁGINA 23

            A partir desta página, temos o clímax do capítulo. Até então, Laurie acreditava que seu pai verdadeiro era Hodded Justice, o antigo namorado de sua mãe. Cada cena do presente é intercalada com uma cena de flash back, em cortes rápidos. A chave da questão está na frase do Comediante: “Não se pode mais conversar com a próp... com a filha de uma velha amiga?”.
            Manhattan percebe e argumenta que ela está fugindo de algo. “Não seja idiota! Fugindo do quê? E-eu nunca... jamais evitei ou fugi da verdade[14], responde a moça. Nos quadros dois, quatro, seis e oito, o desenho resgata um acontecimento e o texto remete a outro. A narrativa vai se tornando mais caótica à medida em que os pensamentos de Laurie galopam em direção à revelação final.

PÁGINA 24-25

            Na página 24 Laurie completa mentalmente a frase do Comediante: “Não se pode mais conversar com a próp.. pria filha?” e descobre que ele é seu pai. A revelação é particularmente chocante porque Laurie odeia Blake, como fica demonstrado na página 21. A revelação demonstra que Sally teve encontros amorosos com Blake, mesmo depois de ter sido vítima de uma tentativa de estupro. Revoltada, Laurie joga o vidro de Nostalgia contra o castelo de Manhattan e percebemos que a sequência do perfume, que é, inclusive, capa do capítulo, pertence a esse momento.
            O texto dos últimos quadros cria uma metáfora para a vida de Laurie. Até ali ela vivia numa castelo dentro de uma bolha de vidro; o castelo construído por sua mãe quando essa decidiu que a menina seria uma super-heroina. A revelação da identidade de seu pai faz com que o castelo de fadas desmorone. É bastante simbólico, portanto, que o castelo do Dr. Manhattan desabe na página 25.

PÁGINAS 26-27

            Aqui chegamos ao âmago da discussão do capítulo. Manhattan muda de idéia a respeito dos seres humanos. Ele se convence de que a vida é um milagre:
Milagres termodinâmicos... eventos com probabilidades astronômicas de não ocorrer... tais como o oxigênio transformar-se em ouro. Em cada acasalamento humano, um milhão de espermatozóides procuram um óvulo. Multiplique essas probabilidades por incontáveis gerações... encontrando... gerando... esse exato filho... aquela exata filha... Sua mãe amou um homem que ela tinha todos os motivos para odiar. Dessa união, dos bilhões de crianças competindo para a fertilização, foi você, apenas você que emergiu. Destilar uma forma tão específica daquele caos de improbabilidades, é como transformar ar em ouro... isso é o máximo de inverossimilhança. O milagre termodinâmico.[15]
            Como já foi dito na introdução, quanto maior o grau de improbabilidade de um evento, mais caótico ele é. Para Manhattan, o nascimento não só de Laurie, como de qualquer um no mundo é o máximo de improbabilidade. Milhões de espermatozóides procuram o óvulo, mas só um o fecunda. Se somarmos os problemas de gestação, as possibilidade de morte tanto da mãe quanto da criança, temos que o nascimento de qualquer um é um “milagre caótico”.
            Moore parece fazer eco a Edgar Morin, quando este diz:
Quando penso na minha vida, vejo que sou fruto de um encontro muito improvável entre meus progenitores. Vejo que sou produto de um espermatozóide salvo entre cento e oitenta milhões que, não sei por sorte ou infortúnio, se introduziu no óvulo de minha mãe. Soube que fui vítima de manobras abortivas, que deram resultado com meu predecessor, mas ninguém saberá dizer porque escapei à arrastadeira (...) E cada vida é tecida dessa forma, sempre com um fio de acaso misturado com o fio da necessidade. Sendo assim, não são fórmulas matemáticas que vão dizer-nos o que é uma vida humana, não são aspectos exteriores sociológicos que a vão encerrar no seu determinismo.[16]
            É interessante notar que o relevo marciano expressa a mesma face sorridente do botton do Comediante. Uma figura que ganha contornos fractais pela repetição ao longo da obra. É bastante emblemático que Manhattan tenha sua revelação justamente numa cena em que o conjunto forma um fractal. É uma revelação intimamente ligada à volta do humanismo e à uma nova visão da ciência, como se depreende da fala de Manhattan: “Mas o mundo está tão cheio de pessoas, tão abarrotado desses milagres, que eles se tornam comuns. E nós esquecemos... Eu esqueço[17].
             O último balão da página 27 parece mesmo ter sido tirado de um texto de Kuhn, tal a semelhança com a concepção de revolução científica e mudança de paradigma: “Nós olhamos continuamente para o mundo, e ele se torna enfadonho em nossas percepções. Contudo, visto de um novo ângulo, ele ainda pode ser surpreendente. Excitante[18].
            Moore, evidentemente, identifica a teoria do caos com um novo paradigma e advoga sua causa.

PÁGINA 28

            Nesta página a visão do leitor continua se afastando de Marte até que reste apenas o espaço, o vácuo, a escuridão. Temos aqui três legendas em que o Dr. Manhattan diz a Laurie para enxugar as lágrimas e dá a entender que voltarão à Terra para tentar salvá-la do holocausto nuclear.
            Na página 17 Manhattan havia dito que o episódio terminaria com laurie em lágrimas, sugerindo que a guerra nuclear seria inevitável e que a garota não conseguiria convencê-lo a intervir. Há algo de curioso nisso se lembrarmos da frase de Farmer: “O sitema é determinista, mas não sabemos o que ele fará da próxima vez”. Manhattan é capaz de prever que Laurie irá chorar, mas não a razão de seu choro. O interior de um ser humano escapa ao determinismo laplaciano:
O interior de um ser humano  e possivelmente o comportamento de toda a sociedade, obedecia às regras do caos. (...)As mesmas equações que explicavam os fluxos caóticos de elétrons também diziam porque uma mulher chora. Só por esse motivo ele (Dr. Manhattan) volta a se interessar pelos mortais comuns.[19]
            O último quadrinho é totalmente negro, com uma ou outra estrela (Na edição brasileira há uma falha de impressão que deixou alguns pontos brancos tanto nesta quanto na cena da primeira página). O capítulo começa e termina, portanto, com a mesma cena, ou seja, um quadro negro. Só que agora vemos algumas estrelas (o significado fractal dessa repetição de cenas já foi explica nos capítulos anteriores) o que combina com a citação de Jung, retirada do livro Memórias, Sonhos e reflexões: “Pelo que podemos perceber, o único propósito da existência humana é acender uma luz nas trevas da mera existência”.



[1] Uma cópia da história pode ser encontrada em anexo.
[2] FAYGA OSTROWER apud UMA POSSIBILIDADE para ilustrar o infinito. Ciência Hoje, 80. Rio de Janeiro, SBPC, 1992,p. 56.
[3]A Idéia é aquilo sobre o que trata a história. Não a trama, ou o desenvolvimento da história, mas aquilo sobre o que é a história essencialmente. Como exemplo posso citar a história A Maldição, publicada da revista Monstro do Pântano, 3, editora abril. Essa história é sobre as dificuldades encontradas por uma mulher em uma sociedade machista, usando o tabu da mestruação como motivo central. Essa não é a trama da história - a trama fala de uma mulher em uma nova casa construída sobre uma tribo indígena e sendo possuída por um espírito que a torna um lobisomem. Espero que a diferença entre a IDÉIA  e TRAMA  esteja clara, pois isso é uma coisa importante geralmente ingnorada pelos escritores de quadrinhos. A maior parte dos gibis tem tramas que concernem à luta entre dois ou mais antagonistas. O conflito é geralmente resolvido com alguma arma ou super-poder. Exceto o banal ‘o bem sempre triunfa sobre o mal’ não há nenhuma IDEIA na maioria desses gibis”. MOORE, Alan. Escrevendo Quadrinhos (tradução  condensada de Gian Danton). Sequência, 3. Curitiba, setembro de 1996, p. 17-18.
[4] CALAZANS, Flávio. Propaganda Subliminar Multimídia. São Paulo, Summus, 1992,p. 65-66
[5] SIENKIEWCZ, Bill. Entrevista. Revista HQ, 1. São Paulo, Palermo, p. 9
[6] MOORE, op. cit., v5-1, p. 8.
[7] Ibid, p.9
[8] MOORE, op. cit, v1-1, p. 32
[9] Ibid,  v5-1,p. 13.
[10] Ibid, p. 14.
[11] Ibid, p. 18-19.
[12] MORIN, op. cit.,p. 166
[13] MOORE, op. cit., v.5-1, p. 22.
[14] Ibid, p. 23.
[15] MOORE, op. cit., p. 26-27.
[16] MORIN, op. cit.,p. 176
[17] MOORE, p. 27.
[18] Ibid, p. 27.
[19] Recado, 58. São Paulo, Devir, p. 4

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