Ao longo desta dissertação,
trabalharemos com alguns conceitos que cumpre esclarecer. Ao tratarmos da
divulgação científica nas histórias em quadrinhos, partimos da teoria das
revoluções científicas de Thomas S. Kuhn.
Fundamentando-se
na história das ciências, Kuhn desenvolveu uma nova visão epistemológica. Até
ele, a ciência era vista como um muro, ao qual cada cientista ia acrescentando
o seu tijolo, resultando o conjunto no chamado saber científico. É a visão
cumulativa, na qual o desenvolvimento da ciência
torna-se
o processo gradativo através do qual esses itens foram adicionados,
isoladamente ou em combinação, ao estoque sempre crescente que constitui o
conhecimento e a técnica científicos. E a história da ciência torna-se a
disciplina que registra tanto esses aumentos sucessivos quanto os obstáculos
que inibem sua acumulação.[1]
Kuhn
propõe uma nova imagem de ciência. Nesse novo quadro, vemos grupos de
cientistas lutando por esta ou aquela teoria em contraposição a outras.
Os
primeiros estágios do desenvolvimento da maioria das ciências têm se
caracterizado pela contínua competição entre diversas concepções de natureza
distintas; cada uma delas parcialmente derivada e todas apenas aproximadamente
compatíveis com os ditames da observação e do método científico. O que
diferenciou essas várias escolas não foi um ou outro insucesso do método -
todas elas eram “científicas”- mas aquilo que chamaremos a incomensurabilidade
de suas maneiras de ver o mundo e nele praticar a ciência.[2]
Uma
vez que uma das escolas triunfa, temos o estabelecimento de um paradigma e
surge o que Kuhn chamou de ciência normal.
A
Física de Aristóteles, o Almagesto de Ptolomeu, os Principia e a Óptica de
Newton, a Eletricidade de Franklin, a Química de Lavoisier e a Geologia de
Lyell - esses e muitos outros trabalhos serviram, por algum tempo, para definir
implicitamente os problemas e os métodos legítimos de um campo de pesquisa para
as gerações posteriores e praticantes da ciência. Puderam fazer isso porque
partilhavam duas características essenciais. Suas realizações foram
suficientemente sem precedentes para atrair um grupo duradouro de partidários,
afastando-os de outras formas de atividades científicas dissimilares.
Simultaneamente, suas realizações eram suficientemente abertas para deixar toda
espécie de problemas para serem resolvidos pelo grupo redefinindo de
praticantes da ciência. Daqui por diante deverei referir-me às realizações que
partilham essas duas características como “paradigmas”, um termo estreitamente
relacionado com a ciência normal.
[3]
Temos
acima uma das definições de Kuhn para o paradigma. Margareth Masterman
encontrou 21 delas no livro A Estrutura das Revoluções Científicas.
Kuhn define paradigmas como: 1) uma realização científica universalmente
reconhecida; 2) como mito; 3) como filosofia, ou constelação de perguntas, 4)
como manual, ou obra clássica (como vimos na citação acima); 5) como toda uma
tradição e, em certo sentido, um modelo; 6) como realização científica; 7) como
analogia; 8) como especulação metafísica bem sucedida; 9) como dispositivo
aceito na lei comum; 10) como fonte de instrumentos; 11) como ilustração
normal; 12) como expediente, ou tipo de instrumentos; 13) como um baralho de
cartas anômalo; 14) como fábrica de máquinas-ferramentas; 15) como figura de
gestalt que pode ser vista de duas maneiras; 16) como um conjunto de
instituições políticas; 17) como “modelo” aplicado à quase metafísica; 18) como
um princípio organizador capaz de governar a própria percepção; 19) como ponto
de vista epistemológico geral; 20) como um modo de ver; 21) como algo que
define ampla extensão de realidade. [4]
As
diversas definições de paradigma não diminuem o valor do trabalho de Kuhn. Até
porque elas não são excludentes. Ao contrário, a originalidade de seu trabalho
e a amplitude de sua definição de paradigma faz de suas idéias um verdadeiro
paradigma epistemológico.
O
próprio Kuhn cita a experiência de Bruner e Postman, que serve de metáfora para
a sua noção de paradigma e, ao mesmo tempo, nos dá algumas pistas para sua
compreensão. Os dois psicólogos pediram a um determinado número de pessoas que
identificassem uma série de cartas de baralho após serem expostas a elas
durante períodos curtos. A maioria das cartas era normal, mas algumas haviam
sido modificadas como, por exemplo, um seis de espadas vermelho e um quatro de
copas preto.
Mesmo
nas exposições mais breves muitos indivíduos identificavam a maioria das
cartas. Depois de um pequeno acréscimo no tempo de exposição, todos os
entrevistados identificavam todas as cartas. No caso das cartas normais, essas identificações
eram geralmente corretas, mas as cartas anômalas eram quase sempre
identificadas como normais, sem hesitação ou perplexidades aparentes. Por
exemplo, o quatro de copas preto era tomado pelo quatro de espadas ou de copas.
Sem qualquer consciência da anomalia, ele era imediatamente adaptado a uma das
categorias conceituais preparadas pelo experiência prévia. [5]
Com
uma exposição maior das cartas anômalas, os entrevistados começavam a hesitar e
a perceber que havia algo errado. Um deles disse, por exemplo, que o seis de
espadas era preto, mas tinha o contorno vermelho. Um deles pareceu
completamente desorientado: “não posso
fazer a distinção, seja lá qual for. Desta vez nem parecia uma carta. Já não
sei sua cor, nem se é de espadas ou de copas. Não estou seguro nem mesmo de que
é uma carta de copas. Meu Deus!” [6]
Para
Kuhn, essa experiência “proporciona um
esquema maravilhosamente simples e convincente do processo de descoberta
científica. Na ciência, assim como na experiência com cartas de baralho, a
novidade somente emerge com dificuldade
(dificuldade que se manifesta através da resistência) contra um pano de
fundo fornecido pelas expectativas” [7]
Em
outras palavras, temos certas expectativas a respeito de uma série de coisas.
Sabemos que a macieira irá dar maçãs e laranjeira dará laranjas. Essas
expectativas são aprendidas ao longo da vida. Em se tratando de ciências, o
cientista aprende, desde o primeiro ano de sua graduação, a enxergar o mundo de
acordo com o paradigma vigente.
Um cientista ensinado no
paradigma newtoniano vê, numa pedra caindo, a ação da força de gravidade. Mas,
antes de Newton, os aristotélicos viam, no mesmo fenômeno, uma pedra voltando
ao seu estado natural. O estado natural da pedra é o chão sendo, portanto,
normal que ela caia assim que tenha uma chance para isso.
Uma
outra metáfora veria o paradigma como regras do jogo. Agora imaginemos que
pessoas acostumadas a jogar damas se deparassem com um tabuleiro de xadrez.
Seria natural que eles usassem as peças para jogar damas. Mas há algo errado.
Sobram peças. E, além disso, por que elas têm formatos diferentes se no jogo de
damas todas as pedras têm o mesmo valor e se movimentam da mesma maneira? É o
que Kuhn chama de anomalia. É quando
a natureza não corresponde à expectativa que o paradigma faz dela. Como se, por
exemplo, a macieira desse laranjas e a laranjeira nos presenteasse com
deliciosas maçãs.
Mas
o que é erro em um paradigma, pode ser acerto em outro. Se alguém tiver a idéia
de dispor as peças do xadrez ocupando as duas primeiras fileiras de cada lado,
nas casas pretas e brancas, descobrirá que não sobram ou faltam peças.
Entretanto, os jogadores de damas continuarão achando que se trata de um jogo
de damas. Para eles, o fabricante errou construindo peças a mais. Há, portanto,
uma resistência. Os cientistas normais (aqueles que seguem o paradigma) ignoram
a anomalia, tentam diminuir-lhe a importância, ou argumentam simplesmente que
se trata de um erro de observação.
Da mesma forma que é
difícil livrar-se de hábitos arraigados, torna-se difícil para o pesquisador
educado dentro do paradigma abandoná-lo. Não admira, portanto, que os
cientistas realizadores de descobertas ou teorias originais sejam, na sua
maioria, jovens:
Quase
sempre, os homens que fazem essas invenções fundamentais são muito jovens ou
estão há pouco tempo na área de estudos cujo paradigma modificam. Talvez não
fosse necessários fazer essa observação, visto que tais homens, sendo pouco
comprometidos com as regras tradicionais da ciência normal em razão de sua
limitada prática anterior, têm grandes probabilidades de perceber que tais
regras não mais definem alternativas viáveis e de conceber um outro conjunto
que possa substituí-las.
[8]
Ao
ser perguntado como havia conseguido, em seu primeiro filme, realizar uma
obra-prima nunca superada na história do cinema, Orson Wells teria respondido:
“Ignorância. Eu achava que se podia fazer tudo em cinema”.
Temos
aqui a concepção de paradigma como um novo modo de ver. É o que acontece
durante as revoluções científicas. De repente [9]
alguém descobre que as peças de xadrez são diferentes porque cada uma tem uma
função. Os que acreditarem na nova teoria verão não mais um jogo de damas
bizarro, e sim um outro jogo.
em
períodos de revolução, quando a tradição científica normal muda, a percepção
que o cientista tem de seu meio ambiente deve ser reeducada - deve aprender a
ver uma nova forma (gestalt) em algumas situações com as quais se está mais
familiarizado. [10]
Essa
concepção apresenta semelhança com a definição de paradigma como uma figura de
gestalt, que pode ser vista de duas maneiras. Como o desenho de um pato, que,
uma vez virado, torna-se um coelho e vice-versa. Mas, embora a imagem exija um
ponto de vista inusitado, ela se revela mais acertada. O que era erro antes,
torna-se acerto.
Mas,
se o paradigma é um novo modo de ver, a ciência normal não possui um paradigma?
Afinal, a ciência normal trabalha sempre com resultados esperados, daí a
analogia com o quebra-cabeça. Todo jogador de quebra-cabeça tem idéia de qual
será o resultado final de seu trabalho. A habilidade, no jogo de quebra-cabeça,
consiste precisamente em se chegar a um resultado que já é esperado.
Para
Kuhn, a ciência normal é ciência normal justamente porque segue o paradigma. É
o paradigma que garante que há um resultado para o quebra-cabeça. A ciência
normal surge a partir de um momento em que uma das teorias da fase
pré-paradigmática triunfa sobre as outras. Portanto, o paradigma é também uma
tradição e, em certo sentido, um modelo, uma definição que se aproxima da de manual.
Para Kuhn,
Os
cientistas trabalham a partir de modelos adquiridos através da educação ou da
literatura a que são expostos posteriormente, muitas vezes sem conhecer ou
precisar conhecer quais as características que proporcionam o status de
paradigma comunitário a esses modelos. [11]
Portanto,
o paradigma é também um modelo. Mas que tipo de modelo? Um para ver. O
paradigma é um óculo que ajuda o cientista a ver a natureza e o ajuda a
compreendê-la. Onde os químicos ligados à teoria do flogismo viam ar desflogistizado,
Lavoisier e seus discípulos, munidos de óculos de um novo paradigma, vêm
oxigênio.
Podemos
dizer, portanto, que o paradigma é um modelo para se ver. Por consequência, um
novo paradigma representa um novo modo de ver a natureza.
Por
outro lado, tem se discutido a questão da abrangência do conceito de paradigma.
Em seu livro, A Estrutura das Revoluções
Científicas, Kuhn usa apenas exemplos tirados da física e da química. Seria
o paradigma um privilégio exclusivo dessas duas áreas do conhecimento? O
próprio Kuhn dá a entender que não. À certa altura ele explica que diariamente
usamos algo parecido com um paradigma para ver o mundo que nos cerca:
somos
levados a suspeitar de que alguma coisa semelhante a um paradigma é um
pré-requisito para a própria percepção. O que um homem vê, depende tanto
daquilo que ele olha como daquilo que sua experiência visual-conceitual prévia
o ensinou a ver. Na ausência de tal treino, só pode haver o que William James
chamou de “confusão artodoante e intensa”[12]
Pelo menos uma vez, Kuhn
usa o conceito de paradigma estendendo-o a campos bastante diversos da física e
da química:
As
pesquisas atuais que se desenvolvem em setores da Filosofia, da Psicologia, da
Linguística e mesmo da História da Arte, convergem todos para a mesma sugestão:
o paradigma tradicional está, de algum modo, equivocado. [13]
O fato de Kuhn ser
físico teórico explica em muito o fato dele usar, preferencialmente, exemplos
desse campo do conhecimento. Por outro lado, ele, em nenhum momento deixa a
entender que sua teoria devesse se limitar somente a esta ou aquela ciência o
que, convenhamos, seria uma leitura restrita de sua obra. Aliás, a própria
teoria das revoluções científicas é um paradigma epistemológico para se
entender campos científicos que vão da psicologia à química. Por essa razão,
usaremos aqui o termo paradigma referindo-nos a diversos campos do conhecimento
científico.
Uma vez definida a
questão do paradigma, passamos à divulgação científica. Segundo Antônio Corrêa
da Costa,
Antes
da criação das academias científicas, em meados do século XVII, não havia
periódicos científicos. Naquela época os “filósofos naturais” comunicavam suas
idéias e os resultados de suas pesquisas através de cartas informais. Esse tipo
de correspondência, devido ao seu alcance e extensão, poder ser descrito mais
apropriadamente como uma longa dissertação sobre determinado assunto (...) para
veicular o intercâmbio de notícias entre os componentes da comunidade
científica, foi criado o periódico científico. Desde então, o desenvolvimento
da ciência tornou-se ligado intimamente á história do periódico.[14]
Portanto,
o primeiro periódico científico, Journal
des Sçavans, publicado por Denis de Sallo, em Paris, em 1665, surge com um
objetivo bem claro: promover a troca de informações entre os cientistas. É o
que chamamos de comunicação primária; o cientista escreve para seus pares. Não
se trata propriamente de uma divulgação científica, que normalmente é voltada
para o público leigo.
Alguns anos antes do Journal des Sçavans, vamos encontrar um
exemplo de divulgação científica de fato. Em 1654, Gwerick, que havia inventado
a bomba de ar em 1645, usou-a para demonstrar a força da pressão do ar. Ele
amarrou uma corda a um pistão e pediu para que 50 homens puxassem a corda,
enquanto ele, vagarosamente, criava um vácuo dentro do cilindro. Nem todos os
esforços dos cinquenta homens conseguiram impedi-lo.
Depois
veio o mais impressionante. Gwericke preparou dois hemisférios que se
encaixavam pelas bordas. Quando se retirava o ar de dentro deles, nem mesmo
parelhas de cavalos postos de cada lado dos hemisférios conseguiam separá-los.
Quando se colocava o ar em seu interior, eles se separavam sozinhos.
Essa
demonstração foi feita diante dos olhos de Ferninand III (1608-1657), que se
tornou titular do Sacro Império em 1637. Ele ficou tão impressionado que mandou
imprimir e publicar o trabalho de Gwericke.[15]
O exemplo acima pode ser
caraterizado como divulgação científica por alguns aspectos. Primeiro, a
demonstração tornou popular conhecimentos que até então eram restritos a um
grupo (Gwericke era prefeito de Mangdeburg e fez suas demonstrações diante do
olhar espantado dos cidadãos).
Para Pierre Fayard, a
vulgarização científica “trata-se de
colocar os profanos em situação de compreender o discurso científico,
adaptando-o, simplificando-o e exemplificando-o”[16].
A
informação nova só é assimilada quando o receptor consegue formulá-la à sua
maneira e integrar esse novo termo à sua linguagem habitual.
Por
outro lado, a divulgação, ou vulgarização diferencia-se do ensino comum por
dois aspectos principais. Primeiro, o público da vulgarização não é cativo.
Nada ou ninguém o obriga a assimilar aquele conhecimento, razão pela qual a
divulgação deve apresentar um chamativo extra, ela deve ser atraente para o
público. Segundo, a divulgação científica não apresenta um programa coerente,
com uma hierarquização ou progressão lógica do conhecimento.
A
experiência de Gwericke, ao exemplificar suas descobertas, pode ser qualificada
como divulgação científica. O sábio prefeito de Mangdeburg não estava dando uma
aula e, portanto, não tinha uma audiência cativa. O povo estava ali pelo
caráter de espetáculo de que a demonstração se recobria. Era como se aquele
homem estivesse fazendo mágica, usando, para isso, a ciência. Fazendo isso, ele
estava permitindo a um público profano a compreensão do discurso científico e,
quem sabe, a assimilação de seu vocabulário. Quantos cidadão de Mangdeburg não
teriam passado a usar a palavra vácuo a partir de 1654?
Mas,
apesar de um bom exemplo de vulgarização científica poder ser encontrado já no
século XVII, até o fim dos anos 1960, a divulgação científica foi uma atividade
marginal, apenas tolerada pelas instituições que produziam ciência. Só a partir
da década de 60 que o quadro começou a mudar. Em 1968 surgiu um movimento de
contestação que questionava a função da ciência numa sociedade cada vez mais
tecnocrata. Uma segunda razão é a banalização dos meios de comunicação à
distância. “Comunicar para existir
se transforma num imperativo comum para
os diferentes atores econômicos, políticos e científicos”. [17]
Uma
questão que ganhou destaque a partir de 68 é o da democracia tecnológica.
Assim
como a alfabetização literária tem sido a chave da democratização política, a
alfabetização científica é a chave da democratização tecnológica. Não há
progresso da liberdade que não passe pelo progresso da cultura. [18]
O mundo em que vivemos é
dominado pela técnica e pela ciência a tal ponto que escolhas tecnológicas
implicam em escolhas de modelos de sociedade. O que é mais importante: comprar
caríssimos equipamentos de diagnósticos, ou investir na prevenção de doenças? O
que é mais conveniente para um país: uma grande usina nuclear, ou pequenas
estações de aproveitamento da energia solar?
Para
Carl Sagan,
As
consequências do analfabetismo científico são muito mais perigosas em nossa
época do que em qualquer outro período anterior. É perigoso e temerário que o
cidadão médio continue a ignorar o aquecimento global, por exemplo, ou a
diminuição da camada de ozônio, a poluição do ar, o lixo tóxico e radioativo, a
chuva ácida, a erosão da camada superior do solo, o desflorestamento tropical,
o crescimento exponencial da população. Os empregos e os salários dependem da
ciência e da tecnologia. Se a nossa nação não puder fabricar, com alta
qualidade e a preços baixos, os produtos que as pessoas querem comprar, as
indústrias continuarão a se deslocar e a transferir um pouco mais de
prosperidade para outras partes do mundo.[19]
Um exemplo de fenômeno
que ameaça a humanidade e só pode ser resolvido com decisões científicas é o
crescimento da população mundial:
Se
o mundo quiser evitar as consequências terríveis do crescimento da população
global, com 10 ou 12 bilhões de pessoas no planeta no final do século XXI,
temos de inventar meios seguros, porém mais eficientes, de cultivar alimentos –
com o auxílio de estoques de sementes, irrigação, fertilizadores, pesticidas,
sistemas de transporte e refrigeração. Serão também necessários métodos
amplamente acessíveis e aceitáveis de contracepção, passos significativos para
a igualdade política das mulheres e melhoramento nos padrões de vida das
pessoas mais pobres. Como será possível fazer tudo isso sem a ciência e a
tecnologia?[20]
Mas como o cidadão pode
participar das decisões científicas, se não dispõe de conhecimentos mínimos que
lhe permitam escolher entre esta ou aquela opção e compreender o assunto e
todas as suas consequências? A divulgação científica adquire, aqui, um
importante papel político e ideológico que aprofundaremos no capítulo 3.
Por
outro lado, as próprias instituições científicas começam a perceber a
importância de divulgar suas descobertas, de mostrar seu trabalho para, assim,
continuar suas pesquisas. Através da divulgação,
As
atividades dos grandes centros de pesquisas são apresentados indiretamente aos
contribuintes e, diretamente, ao Estado. A finalidade das mensagens pode ser
enunciada (numa caricatura): “Vossos tostões são corretamente valorizados. Nós
respondemos a vossas necessidades. Nós somos internacionalmente competitivos;
dê-nos mais, pois nós merecemos”.[21]
Ao
promover a divulgação de suas descobertas, as instituições científicas fazem o
mesmo que Gwericke havia feito naquele remoto ano de 1654 (de fato, o resultado
da demonstração sobre o vácuo foi conseguir o apoio de Ferninando III, assim
como das instituições é conseguir verbas).
Um
outro termo que será constantemente utilizado ao longo do trabalho é caos. Mas o que significa caos? O
dicionário Aurélio define o termo da seguinte maneira: “CAOS (á-u) S.M. 1- Hist. Filos. Nas mitologias e cosmogonias
pré-filosóficas, vazio obscuro e ilimitado que precede e propicia a geração do
mundo. 2 - Grande confusão ou desordem”.[22]
De
fato, já no gênesis encontramos a primeira acepção da palavra, referido por
Aurélio. O caos, aqui, é visto metaforicamente como as trevas, enquanto que a
luz representa a ordem:
No
princípio Deus criou o Céu e a terra. A Terra era sem forma e vazia; e havia
trevas sobre a face do abismo, mas o Espírito de Deus pairava sobre a face das
águas. Disse Deus: haja luz. E houve luz. Viu Deus que a luz era boa, e fez a
separação entre a luz e as trevas.
[23]
O trecho acima especifica que a Terra, no seu
início, durante o caos criativo, não tinha forma (ou gestalt). Não havia redundância,
pois é a redundância que dá forma às coisas. Era o grau de entropia máxima,
quando todas as alternativas têm a mesma possibilidade de acontecerem. Essa
visão do início do mundo se assemelha àquela dos gregos: “Antes de tudo, foi o abismo (caos), depois a Terra (Gaia ou Gê) (...) e
o amor (Eros)” [24].
Os chineses identificam
o caos com tao: “Para além de palavra e
pensamento/ Está TAO, origem sem nome ou forma” [25]
O caos é o impulso
criador, origem de tudo e incompreensível pela palavra e pensamento. Portanto,
reflexões sobre o caos podem ser encontradas em diversas culturas desde a
origem do mundo.
No entanto, a primeira
tentativa de compreender o caos em termos científicos veio com a cibernética,
mais especificamente com a teoria da informação. A TI trabalha o conceito de
caos relacionando-o com o segundo princípio da termodinâmica, “que é simultaneamente um princípio
irreversível de degradação de energia, um princípio de desordem, isto é, de
agitação e dispersão calórica, e um princípio de desorganização que afeta, mais
cedo ou mais tarde, todos os sistemas organizados”. [26]
Em
outras palavras, o segundo princípio reza que o universo tem uma tendência
natural à desordem, à perda de energia.
Divida-se
uma piscina no meio, com alguma barreira; encha-se uma metade de água e a
outras de tinta; levanta-se a barreira, e simplesmente pelo movimento aleatório
das moléculas, tinta e água acabam por misturar-se. A mistura nunca volta
atrás, mesmo que esperemos até o fim do universo, razão pela qual se diz com
frequência que a Segunda Lei é a parte da física que faz do tempo uma rua de
mão única. Entropia é o nome para as características dos sistemas que aumenta
com a Segunda Lei - mistura, desordem, aleatoriedade. [27]
Na década de 40, Claude Shannon, um pesquisador da Bell
Telephone Laboratories resolveu aplicar o conceito de entropia aos problemas da
comunicação. Para Shannon, a entropia relaciona-se com a variedade da
informação, sendo um sinônimo de caos.
Visto
por este ângulo, a informação máxima ou a variedade máxima de um conjunto de
eventos (ou de sinais) ocorre quando eles são independentes entre si, ou seja,
não apresentam articulação ou coerção mútua (a desordem ou a entropia do
conjunto, neste caso, é máxima).[28]
Embora seja também um sinônimo de ruído, a entropia, em
comunicação, não representa, necessariamente, perda de informação. Certos
níveis de entropia servem, ao contrário, para chamar atenção para a mensagem.
Letras brancas sobre um fundo preto são um exemplo disso. As vozes de animais
na música Good Morning, dos Beatles, são outro exemplo de entropia
positiva.
Como
uma maneira de prevenir que a entropia prejudique a comunicação, usa-se, em
geral, a redundância. Essa é a razão pela qual batemos várias vezes na porta.
Uma única batida corre o risco de não ser ouvida. A linguagem comum tem uma
redundância superior a 50% sob a forma de sons e letras que não são totalmente
necessários para transmitir a mensagem. A entropia também é relativa ao meio. A
escrita tem menos redundância que a fala porque a possibilidade de entropia é
menor. Por essa mesma razão, os quadrinhos têm menor redundância que o cinema e
o cinema tem menor redundância que a TV.
Para
essa teoria da informação, uma mensagem é tanto mais caótica quanto menor for a
redundância. Para Shannon, a informação é uma redução de incerteza, oferecida
quando se obtém resposta a uma pergunta. [29].
Imaginemos um jogo da forca cuja resposta seja a palavra CAIXA. Descobrir que a letra X
faz parte do conjunto trará maior redução de incerteza do que aconteceria com
qualquer outra letra. Isso porque existem muitas palavras com as letras A,C
e I, mas poucas com X. Portanto, a quantidade de informação
de uma certa mensagem está diretamente relacionada com a sua raridade e
imprevisibilidade. A letra X é mais rara
que A e, portanto, carrega maior
carga de informação.
Por
outro lado, é a redundância que dá forma a uma mensagem e permite que ela possa
ser compreendida. “percebemos ou entendemos o mundo, ou seja, num certo
sentido, temos informação a respeito
dele a partir da redundância, que é uma redução dessa informação ou variedade”
[30]
Os
caos completo seria um macaco numa máquina de escrever. O resultado de sua
traquinagem não seguiria nenhuma regra de sintaxe e, portanto, não teria forma.
Funes,
el memorioso, de
Borges, poderia caracterizar um outro exemplo de caos. Funes não generalizava,
não se lembrava das coisas sob uma forma, ou gestalt. Suas recordações eram
repletas dos mais insignificantes detalhes: “En efecto, Funes no sólo recordaba cada hoja de cada árbol, de cada
monte, sino cada una de las veces que la había percebido o imaginado”.[31]
Borges
conclui que Funes não era capaz de pensar, pois “pensar é olvidar diferencias, es generalizar, abstraer. En el abarrotado mundo de Funes no había sino detalles,
casi imediatos”.[32]
Portanto,
o máximo de informação é também a não-comunicação:
Este
é então o caráter dual da informação: por um lado, a TI é uma teoria que define
a informação como variedade, cuja quantidade máxima ocorre na desordem ou
estado caótico. Por outro lado, a própria percepção, segundo a teoria
gestaltica, só é possível na medida da emergência de uma forma que, à luz dos conceitos da TI,
é forma justamente porque contém menos variedade e portanto menos informação do
que o estado caótico.[33]
Trabalhando
com fenômenos caóticos, o grupo de pesquisas da Universidade de Santa Cruz,
também conhecido como Coletivo dos Sistemas Dinâmicos, destacou-se por usar os
conceitos da teoria da informação na física:
Para
Robert Shaw, os atratores estranhos eram motores de informação. Em sua primeira
e mais ampla concepção, o caos oferecia uma maneira natural de devolver às
ciências físicas, de forma revigorada, as idéias que a teoria da informação
tinha extraído da termodinâmica (...) Os atratores estranhos serviam como
misturadores eficientes. Criavam a imprevisibilidade. Suscitavam a entropia. E, ao ver de Shaw,
criavam informação onde não havia informação.[34]
Para
o coletivo, a principal característica do caos era sua imprevisibilidade:
Na
medida em que informação era apenas uma palavra imaginosa para a
imprevisibilidade, essa concepção simplesmente correspondia a idéias que
cientistas como Ruelle estavam desenvolvendo. Mas a estrutura da teoria da
informação permitiu que o grupo de Santa Cruz adotasse um corpo de raciocínio
matemático que tinha sido bem investigado pelos teóricos da comunicação.[35]
Um
sistema que correspondesse sempre às expectativas era pouco caótico e,
portanto, apresentava pouca informação. Uma torneira gotejando exatamente a
cada dois segundos é um sistema ordenado. Esse sistema pode ser exemplificado
pela série 2-2-2-2-2. Os dados são apenas redundantes, não oferecendo novas
informações ao sistema. Já uma série 2-4-2-4-2 apresenta um pouco mais de
informações, mas ainda é um sistema linear. É fácil perceber uma forma. Já a
série 2-3-6-7-2 é um pouco mais interessante, por ser mais complexa e difícil
de se distinguir um padrão. Com o tempo, no entanto, é possível perceber que o
número seguinte da série será o 3. Quando o sistema se torna caótico, o fluxo
de informações é constante e o sistema se torna indeterminado. Como uma série
2-15-7-3-20-1. Aqui é muito difícil dizer o que virá depois do 1.
A
torneira pingando foi o sistema estudado por Shaw:
A
maioria das pessoas imagina que o gotejar de uma torneira é sempre periódico,
mas isso não ocorre necessariamente, como revela um momento da experimentação.
“É um exemplo simples de um sistema que passa de um comportamento previsível
para um comportamento imprevisível”, disse Shaw. “Se abrirmos um pouco a
torneira, podemos ver um regime onde o gotejar é irregular. Não verdade não é
um padrão previsível além de um curto tempo. Assim, até mesmo algo tão simples
como uma torneira pode gerar um padrão que é eternamente criativo”.[36]
A
idéia chave de Shaw era: quanto mais imprevisível um evento, mais caótico, e
quanto mais caos, mais informação:
E
o canal que transmite a informação para o alto é o atrator estranho, ampliando
a aleatoriedade inicial, assim como o Efeito Borboleta amplia incertezas para
transformá-las em padrões em grande escala de condições atmosféricas.[37]
Uma
proposição que sempre guiou a ciência clássica é: pequenas alterações provocam
grandes mudanças. Grandes alterações, grandes mudanças. Era isso que permitia
trabalhar-se com o cálculo aproximado:
Classicamente,
a crença na aproximação e na convergência estava bem justificada. Funcionava.
Um pequeno erro na fixação do cometa Halley em 1910 provocaria apenas um
pequeno erro na previsão de sua chegada em 1986 e o erro continuaria sendo
muito pequeno por milhões de anos futuros. Os computadores baseiam-se na mesma
suposição, ao guiarem as naves espaciais: um insumo aproximadamente exato dá um
resultado aproximadamente exato. As previsões econômicas baseiam-se nessa
suposição, embora seu sucesso seja menos evidente. E o mesmo fizeram os
pioneiros da previsão do tempo global.[38]
O
matemático e metereologista Edward Lorenz descobriu que constantemente o tempo
se comportava de maneira completamente diferente: “no sistema específico de equações de Lorenz, os pequenos erros
mostravam-se catastróficos”.[39]
Trabalhando
com gráficos de computador sobre a previsão do tempo, Lorenz percebeu que dois
sistemas que partiam exatamente do mesmo ponto divergiam completamente a partir
de diferenças mínimas. A previsão do tempo, portanto, era eficiente para o dia
em que foi feita, mas nada valiam para seis ou sete dias depois.
A
razão disso era o efeito borboleta. Para pequenas condições meteorológicas - e
para a meteorologia global, pequeno pode significar tempestades ou nevascas -
qualquer previsão perde valor rapidamente. Os erros e as incertezas se
multiplicam, formando um efeito de cascata ascendente através de uma cadeia de
aspectos turbulentos, que vão dos demônios da
poeira e tormentas até redemoinhos continentais que só os satélites
conseguem ver.[40]
O
efeito borboleta também recebe o nome de dependência sensível das condições
iniciais. É a proposição segundo a qual uma borboleta batendo suas asas em Pequim
pode modificar o sistema de chuvas em Nova York.
Na
vida cotidiana, a característica lorenziana da dependência sensível das
condições iniciais paira sobre tudo. Um homem sai de casa de manhã, 30 segundos
mais tarde, um vaso de plantas deixa de acertar a sua cabeça por uns poucos
milímetros, e em seguida ele é atropelado por um caminhão. Ou, menos
dramaticamente, perde o ônibus que passa a cada 10 minutos - sua conexão para
um trem que passa a cada hora. Pequenas alterações no trajeto diário de uma
pessoa podem ter grandes consequências. Um batedor, diante de uma bola que lhe
foi atirada, sabe que aproximadamente o mesmo golpe não produzirá
aproximadamente o mesmo resultado, sendo beisebol um jogo de centímetros.[41]
Assim,
trabalharemos ao longo de nosso trabalho as quatro acepções de caos. A concepção
popular, segundo a qual caos é sinônimo de bagunça, desordem, balbúrdia. A
concepção religiosa de um caos criativo, sem forma (ou gestalt), que dá origem
ao mundo que conhecemos, a concepção da teoria da informação, que trata o caos
como entropia, o excesso de informação configurando o estado caótico. E,
finalmente, trabalharemos com a teoria do caos, que identifica o caos com
imprevisibilidade.
Talvez
não seja correto estabelecer uma diferenciação absoluta entre esses quatro
conceitos, pois, com exceção da concepção popular, as outras três se
assemelham. São pontos de vista diferentes para tratar do mesmo assunto. Até
porque a teoria do caos parte dos pressupostos da teoria da informação, como
foi demonstrado anteriormente. O problema estaria na concepção popular, e isso
por duas razões. A primeira é que o caos, como é entendido pela maior parte da
população, não admite padrão. O segundo é que entra aí um conceito subjetivo de
caos. O que é caos para um indivíduo pode não ser para outro. Livros dispostos por
assunto numa estante podem configurar uma “arrumação” caótica para quem está
acostumado a dispô-los por autor.
Entretanto,
uma vez que Alan Moore usa todas essas acepções em Watchmen, torna-se importante distinguí-las. Na medida do possível,
procuraremos esclarecer a que tipo de caos o autor se refere.
[1]KUHN,
Thomas S. A Estrutura das Revoulções
Científicas. São Paulo, Perspectiva, 1992, p. 20.
[2] Ibid, p.
[3]Ibid, p. 30.
[4]MASTERMAN, Margareth. LAKATOS,
Inre & MUSGRAVE, Alan. A Crítica e o
Desenvolvimento do Conhecimento. São Paulo, Cultrix, Edusp, 1979
[5]KUHN, op. cit., p. 90.
[6] Ibid, p. 90.
[7]Ibid, p. 91.
[8] Ibid, p. 122.
[9] Khun
insiste que a construção de um novo paradígma não é um processo lento e
gradual, mas repentino. Ver
Kuhn, op. cit., p. 158.
[10]Ibid, p. 146.
[11] KUHN, op. cit, p. 70.
[12] Ibid, p. 148.
[13] KUHN, op. cit., p. 156.
[14]COSTA,
Antônio Felipe Correa da. Periódico
Científico: Importância para a Ciência - Histórico e Atualidade. Brasília,
1994, p. 5
[15]ASIMOV,
Isaac. Cronologia das Ciências e
Descobertas, 257
[16] FAYARD,
Pierre. La Communication Scientifique
Publique, Chr. Soc., 1988, Lyon. Tradução inédita de Isaac Epstein
[17] Fayard,
op cit
[18] J.M.
LEBLOND apud Ibid
[19] SAGAN,
Carl. O Mundo Assombrado Pelos Demônios:
A Ciência Vista Como Uma Vela no Escuro. São Paulo, Companhia de Letras,
1996, p.21.
[20] Ibid,
p. 25
[21] Ibid
[22] NOVO DICIONÁRIO BÁSICO DA LÍNGUA PORTUGUESA
FOLHA/AURÉLIO. São Paulo, Folha de São Paulo, Nova Fronteira, 1995, 125
[23]
GENESIS, 1,1-14
[24]
Teogenia, 116-119 apud Ciência Hoje,
80, vol 14, março de 1992, p. 59
[25] TSÉ,
Lao. Tao Te King. São Paulo,
Alvorada, 1989, p 78
[26] MORIN,
Edgar. Ciência com consciência.
Portugal, Europa-América, 1994, 165
[27] GLEICK,
James. Caos: a criação de uma nova
ciência. Rio de Janeiro, Campus, 1991, 247
[28]
EPSTEIN. Teoria da Informação. São
Paulo, Ática, 1986, p. 6
[29] Ver Shannon apud Ibid, p. 35
[30] Ibid,
p. 12.
[31] BORGES,
Jorge Luis. Artifícios. Madrid, Alianza Editorial, 1995,
p. 16
[32] Ibid, p. 17-18
[33] EPSTEIN, op. cit. p. 7
[34] GLEICK, op. cit. p. 247-248
[35] Ibid, p. 251
[36]Ibid, p. 252
[37]Ibid, 250
[38]GLEICK, op. cit,. p. 13
[39]Ibid, p. 14
[40]Ibid, p.18
[41]Ibid, p. 63
Nenhum comentário:
Postar um comentário