Que
o caos é o tema de Watchmen, isso
parece óbvio para qualquer um que leia a
história. Moore usa diversas vezes a palavra caos, com as mais variadas
acepções.[1]
Na
verdade, a obra, num todo, pode ser considerada caótica por sua estética
entrópica. Watchmen tem muito mais
informações por página que a maior parte das histórias em quadrinhos. A
narrativa linear, típica dos super-heróis,
se fragmenta em tramas e subtramas, criando aquilo que Roberto Elísio
dos Santos chama de caos semiótico:
“Com tantos narradores, a narrativa se
fragmenta (um fato é mostrado de formas diferentes ou muitos fatos são
mostrados ao mesmo tempo, com ação alternada) o que causa o ‘caos semiótico’”.[2]
Moore
usa o tempo todo flash backs, fazendo com que a história adquira um alucinante vai-e-vem. O autor
junta à obra provas de jornais, recortes de revistas, relatórios médicos e
artigos científicos, aumentando em muitos as possibilidades informativas e
caracterizando Watchmen como uma
obra multimídia. A quantidade de quadrinhos
(nove por página) é muito maior que o normal dos comics americanos (uma
média de seis por página). E, mesmo nesses, a ação constantemente se desenrola
em dois níveis: há uma ação em primeiro plano e outra em segundo plano.[3]
Tudo
isso faz com que, sem dúvida, Watchmen
possa ser considerada, do ponto de vista da teoria da informação, uma obra
caótica. Mas em que sentido pode-se afirmar que Watchmen se baseou na teoria do caos?[4]
Antes
de mais nada, é bom lembrar o que representa a teoria do caos para a ciência
deste século. Para Gleick, a ciência clássica pára onde começa o caos:
Desde
que o mundo teve físicos que investigavam as leis da natureza, sofreu também de
um desconhecimento especial sobre a desordem da atmosfera, sobre o mar
turbulento, as variações das populações animais, as oscilações do coração e do
cérebro. O lado irregular da natureza, o lado descontínuo e incerto, têm sido
enigmas para a ciência, ou pior: monstruosidades. [5]
A
ciência clássica interessava-se pela regularidade, pela linearidade. As
equações encontradas nos livros didáticos relacionam-se com sistemas lineares.
Mas, na verdade, a linearidade e o determinismo não são a regra na natureza - e
sim a exceção. A geometria construía modelos aproximados que eliminavam as
reentrâncias, os ruídos e imperfeições. A geometria fractal controi modelos
semelhantes aos da natureza:
As
nuvens não são esfera, como Mandelbrot gosta de dizer. As montanhas não são
cones. O relâmpago não percorre uma linha reta. A nova geometria espelha um
universo que é irregular, e não redondo, áspero e não liso. É uma geometria de
reentrâncias, depressões, do que é fragmentado, torcido, emaranhado e
entrelaçado. O entendimento da complexidade da natureza esperava a suspeita de
que a complexidade não era apenas algo aleatório, não era apenas um acaso.
Exigia a convicção de que o interessante na trajetória de um raio, por exemplo,
não é a sua direção, mas a distribuição dos zigue-zagues. O trabalho de
Mandelbrot fez uma afirmação sobre o mundo, a afirmação de que tais formas
ímpares encerram um significado. As reentrâncias e os emaranhados são mais do
que imperfeições deformantes das formas clássicas da geometria euclidiana. São,
muitas vezes, as chaves para a essência das coisas.[6]
A
questão pode ser resumida no problema a que se propôs Mandelbrot em um de seus
artigos: “Que extensão tem o litoral da Grã-Bretanha?”.
O
cientista inglês Lewis Richardson já havia se feito essa mesma pergunta em
1926. Ele percebeu o quanto era difícil definir a extensão das fronteiras dos
países. Pesquisando em enclicopédias de Portugal, Espanha, Bélgica e Holanda,
ele descobriu discrepâncias de 20 % na extensão estimadas das fronteiras comuns
entre esses países.
Por
que é tão difícil definir as fronteiras de um país, ou do litoral da Grã
Bretanha? Porque a medida é feita a partir de uma aproximação da extensão real
que ignora os recortes do litoral - ou da fronteira. Quanto mais o medidor se
der conta dos detalhes, maior será a medida:
Um
observador que tente calcular a extensão do litoral da Inglaterra a partir de
um satélite obterá um resultado menor que o do observador que tente a mesma
coisa caminhando pelas enseadas e praias, que por sua vez fará uma estimativa
menor do que uma lesma que percorre uma pedra.[7]
Se o litoral fosse uma
forma euclidiana, o método de somar
distâncias em linhas retas cada vez menores convergiria para uma medida que
seria a sua verdadeira extensão:
Mas
Mandelbrot verificou que, à proporção que a escala de medição se torna menor, a
extensão medida do litoral aumenta sem limite, baias e penínsulas revelam
subbaias e subpeninsulas ainda menores - pelo menos até escalas atômicas, onde
o processo é finalmente concluído. Talvez.[8]
Mandelbrot
estava interessado em medir propriedades que não têm definição clara: o grau de
aspereza, de fragmentação, ou de irregularidade de um objeto. Para isso, ele
usou a dimensão fracionada:
Mandelbrot
especificou maneiras de calcular a dimensão fracionada dos objetos reais,
levando-se em conta alguma técnica de construção de uma forma, ou alguns dados,
e fez com sua geometria uma afirmação sobre os padrões irregulares que estudara
na natureza: a de que o grau de irregularidade permanece constante em
diferentes escalas. Com frequência surpreendente, tal afirmação se mostra
verdadeira. O mundo exibe, repetidamente, uma irregularidade regular.[9]
Para
denominar sua formas, Mandelbrot utilizou o adjetivo latino fractus, do verbo latino frangere, quebrar, fraturar. O
resultado seria a palavra fractal.
Uma
maneira de construir um fractal já havia sido descrita pelo matemático sueco
Helger Von Koch, em 1904. Para produzir aquilo que ficou conhecido como curva de Koch, basta um triângulo com
30 cm de cada lado. Marca-se um terço da parte do meio de cada lado e coloca-se
ali um novo triângulo com um terço do tamanho do primeiro. Então se coloca
triângulos menores em cada um dos 12 lados resultantes. Repete-se a operação
até o infinito. O contorno se torna cada vez mais detalhado. Cada nova
transformação acrescenta uma área à parte interna da curva, mas a área total
permanece finita. Entretanto, “a curva em
si é infinitamente longa, tão longa quanto uma linha reta que se estendesse nas
beiradas do universo”.[10]
Curva de Koch |
Castelo do Dr. Manhattan. |
Em
Watchmen podemos encontrar um objeto
produzido à semelhança da curva de Koch
no castelo do Dr. Manhattan.
Constituído de peças de relógio, com ponteiros como engrenagem, o castelo apresenta as mesmas
características da curva de Koch.
A primeira delas,
evidentemente, relaciona-se com o processo de produzir um objeto de proporções infinitas numa área finita através
da adição de partes semelhantes.
Uma
observação simples do castelo revela
uma grande complexidade numa forma constituída de formas simples. Em termos de
teoria da informação, poderíamos dizer que o todo apresenta grande quantidade
de informação, apesar de suas partes serem redundantes. Em outras palavras: o
todo é maior que a soma das partes.
Mas
o castelo apresenta uma outra característica fractal, que é a auto-semelhança.
Em seu interior, copos e cadeiras refletem as mesmas formas geométricas do
todo.
Para
Gleick, a principal característica dos fractais é a auto-semelhança:
Acima
de tudo, fractal significa auto-semelhança. A auto-semelhança é a simetria
através de escalas. Significa recorrência, um padrão dentro de outro padrão
(...) Formas monstruosas como a curva de Koch exibem uma auto-semelhança porque
parecem exatamente a mesma coisa, mesmo sob grande ampliação. A auto-semelhança
está contida na técnica de construção de curvas - a mesma transformação é
repetida em escalas cada vez menores. A auto-semelhança é uma característica
facilmente identificável. Suas imagens estão por toda parte, na cultura: no
reflexo infinitamente profundo de uma pessoa entre dois espelhos, ou na caricatura
em que um peixe come um peixe menor, que come um peixe menor, etc. Mandelbrot
gosta de citar Swift: “E assim, observam os naturalistas, uma pulga/ Tem pulgas
menores que a atormentam/ E estas têm pulgas menores que as picam,/ E assim por
diante, ad infinitum”.[11]
Em
que sentido a auto-semelhança pode ser encontrada em Watchmen?
Primeiramente,
através de uma metáfora com o próprio título. Relógios podem ser observados na
história em micro e macro-escalas. O universo do Dr. Manhattan é visto como um relógio: “Talvez o mundo não seja feito. Talvez nada seja feito. Talvez
simplesmente tenha estado sempre lá. Um relógio sem relojoeiro”.[12]
Se
nos aproximarmos um pouco, veremos o castelo do Dr. Manhattan, construído a partir de peças de relógios. Se olharmos
um pouco mais de perto, veremos que Joe Osterman se tornou o Dr. Manhattan graças a um relógio
esquecido dentro de uma câmara de testes. No mundo determinista do Dr. Manhattan, o relógio é um padrão
recorrente em diversas escalas. Não por acaso, o capítulo reservado a ele
chama-se Relojoeiro (Watchmaker, no original).
Uma
outra construção que imita os fractais é o boton do Comediante manchado de sangue. Já no primeiro quadrinho da
história, nós o vemos sobre uma calçada suja de sangue. A imagem se repete por
toda a obra, em diversas escalas: um rosto de uma mulher refletida em uma
xícara de café, uma nave refletida em um óculos, uma cratera em Marte...
Uma
vez que formas fractais podem ser facilmente encontradas na natureza, Moore
reproduz o conceito, espalhando formas auto-semelhantes em diversas escalas ao
longo de sua obra.
Como
já foi dito anteriormente, o primeiro quadrinho apresenta o botton do Comediante manchado de sangue. O último
quadrinho, por sua vez, apresenta um plano detalhe de uma camisa onde vemos o
mesmo rosto sorridente, agora manchado de
catchup. Com isso os autores revelam a nítida influência da geometria
fractal. Por mais que ampliemos uma forma fractal, ela resultará na mesma
figura.
A imagem símbolo do Comediante se repete em escalas. De um boton caído na calçada a uma cratera em Marte. |
Da
mesma forma, todos os capítulos começam e terminam com figuras semelhantes,
revelando o mesmo efeito fractal.
Mais
difícil de perceber que o seu aspecto iconográfico, a auto-semelhança em termos
de narrativa também pode ser encontrada em Watchmen.
A partir do segundo número da série, acompanhamos um garoto que lê, em uma
banca de revistas, um gibi de piratas chamado Contos do Cargueiro Negro.
Moore
chega a escrever um artigo, supostamente extraído do livro Tesouro em Quadrinhos, em que analisa o estilo dos autores e faz o
resumo da história:
Em
MAROONED, saga que ocupa as edições 23 e 24, nós encontramos Feinberg e Shea em
sua melhor forma. O que diferencia esse conto dos demais é o fato de ele
explorar apenas um personagem. Trata-se de um jovem marinheiro, cujo barco é
afundado pelo Cargueiro Negro antes que ele possa retornar à terra natal e
avisar sua gente da chegada da diabólica embarcação. Lançado numa ilha
desabitada, tendo apenas a companhia dos amigos mortos, acompanhamos o drama do
marinheiro, atormentado pela existência daquela tripulação bestial que se
aproxima de sua família. Para evitar uma calamidade, somos testemunhas do fato
mais grotesco já usado em revistas em quadrinhos piratas: o náufrago constrói
uma balsa utilizando como bóia os cadáveres dos companheiros cheios de gás. Ao
chegar à terra, são e salvo na sua horrível balsa, ele tenta, desesperadamente,
alcançar sua casa; apela até para um assassinato afim de conseguir um cavalo.[13]
A
história do gibi acaba se revelando uma metáfora da história de Watchmen. O marinheiro seria o equivalente,
a ponto pequeno, de Ozimandias. Ele
chega a matar pessoas para conseguir a salvação de sua família. Ozimandias também não se deixa tolher
por questões éticas na realização de sua plano para salvar o mundo de uma
guerra nuclear.
Da
mesma forma que uma cratera em Marte e um botton têm a mesma imagem, se
aproximarmos nossos olhos de Watchmen
com uma lupa, encontraremos o gibi de piratas
Essa
auto-semelhança fica implícita na fala de Ozimandias:
“Jon, sei que as pessoas me acham
insensível, mas eu sinto cada morte. Todas as noites... sonho que estou nadando
em direção a um... esqueça, isso não é significante”.[14]
A
referência torna-se óbvia quando lembramos que a história de piratas termina
com o marinheiro nadando em direção ao Cargueiro
Negro, enquanto o texto diz:
A
horrível verdade surgiu à minha frente, enquanto eu nadava em direção ao
Cargueiro ancorado. Não havia nenhum plano para capturar Davidstown. O que uma
cidadezinha como aquela poderia oferecer aos piratas que ceifaram a riqueza de
Sargaço? O navio estava mais perto. Continuei nadando.[15]
Mas
passemos para outro conceito básico da teoria do caos: a dependência sensível
das condições iniciais, ou efeito borboleta.
Em
Watchmen podem ser encontrados
inúmeros efeitos borboleta. O primeiro deles relaciona-se com o mote principal
da série: a noção de que o surgimento dos super-heróis modificaria o mundo.
Mais especificamente, o surgimento do Dr.
Manhattan, na década de 60, provoca uma reviravolta que distancia
completamente o mundo de Watchmen do
nosso. Com a ajuda de Manhattan, os
EUA ganham a guerra do Vietnã e, fortalecido por essa vitória, Nixon não é
deposto pelo escândalo de Watergate, sendo reeleito duas vezes.
Com
a derrota vietnamita o mundo transforma-se. O fracasso dos hippies e das revoluções
estudantis de 1968 tornam a Terra um lugar violento e dominado por punks (...)
O mundo ainda se mantém sob o estigma da Guerra Fria, ameaçado por uma guerra
atômica.[16]
O
próprio Moore, em um dos anexos, analisa a influência do surgimento dos super-heróis:
A
tecnologia criada pelo Dr. Manhattan mudou o nosso modo de encarar o vestuário,
alimentação e meios de transporte. Nós dirigimos carros elétricos e viajamos em
confortáveis e econômicas aeronaves. Toda nossa cultura teve que se acomodar
diante da presença de um ser mais do que humano, e todos nós sentimos as
consequências. Tal evidência nos cerca diariamente nas primeiras páginas dos
jornais: um único ser mudou o mundo inteiro, levando-o a ficar mais próximo de
sua derradeira destruição.[17]
E,
no entanto, toda essa transformação é resultado de eventos insignificantes que
vão se sobrepondo. Como vimos anteriormente, Jon torna-se o Dr. Manhattan ao ficar preso na câmara
de testes que desintegra seus campo intrínseco. Se ele e Janey não tivessem ido
ao parque de diversões no dia anterior, se a pulseira do relógio da moça não
tivesse arrebentado, se um sujeito gordo não tivesse pisado nele, se Jon não
tivesse se oferecido para consertá-lo, se ele não tivesse esquecido o relógio
na câmara de campo intrínseco, se um único desses pequenos eventos tivesse se
passado de maneira diversa, o Dr.
Manhattan não existiria e, portanto, as alterações causadas por ele
deixariam de acontecer. Na verdade, não existiria Watchmen se não fosse o relógio quebrado de Janey. Esse é o grande
efeito borboleta da história. Mas, se procurarmos bem, acabaremos encontrando
outros.
A reunião dos Minutemen é um dos efeitos borboletas da história. |
Em
1966, Nelson Gardner, o Capitão
Metrópolis, organizou uma reunião do grupo anti-crime. A idéia era formar
uma esquipe como os Minutemen da
década de 40. Compareceram à reunião o próprio Capitão, o Dr. Manhattan
e sua esposa Jane, Silk Spectre
(Laurie), Ozimandias, Rorschach, Nite Owl e o Comediante.
A reunião é uma metáfora das especulações de Farner a respeito do livre
arbítrio e do destino: “O sistema é
determinista, mas não sabemos dizer o que ele fará da próxima vez”.[18]
A
linha do destino dos personagens (em especial de Ozimandias) se modifica a partir daquela reunião. Essa é a razão
pela qual ela é lembrada por vários personagens, sendo mostrada de vários
pontos de vista. De certo modo, essa reunião é responsável pela trama de Watchmen. É ali que Ozimandias decide engendrar um plano
para salvar o planeta da ameaça atômica. A importância do evento é evidenciada
pela fala do herói:
aquela
comédia negra da vida foi explicada pelo próprio Comediante no fracasso de 66.
Estão lembrados? Ele discutiu a inevitabilidade de um conflito nuclear
mundial... e eu abri os olhos! Só os melhores comediantes fazem isso. Eu me
lembro do gráfico chamuscando. Nelson dizia que alguém tinha que salvar o
mundo. Sua voz era trêmula e queixosa... Então eu entendi... e tudo ficou claro.[19]
É
naquela reunião que começa o romance entre o Dr. Manhattan e Laurie. Sua esposa, Janey, ressentida, faz as
acusações que levariam Jon ao exílio em Marte (entre outras, a acusação de que
ele teria lhe provocado câncer). Em outras palavras, se não houvesse aquela
reunião, talvez Jon e Laurie não tivessem se conhecido e não tivessem iniciado
o namoro que teria como resultado o seu exílio em Marte. Sem o exílio, plano de
Ozimandias seria impraticável.
Finalmente,
para Laurie a reunião foi marcada por eventos que a levariam a descobrir a
verdadeira identidade de seu pai, como veremos no capítulo seguinte.
Watchmen começa com um efeito borboleta
(o assassinato do Comediante) e
termina com um. Já nos referimos anteriormente ao plano de Ozimandias. Na segunda parte do capítulo 5 (capítulo 10 na edição
americana) Rorschach e Nite Owl descobrem o plano de Ozimandias. Rorschach escreve todas as informações em seu diário e o manda ao New Frontiersman, um jornaleco de
extrema direita, envolvido numa paranóica campanha anti-comunista. Na última
página da história, vemos Hector Godfrey, o editor, preocupado com nova
situação mundial. Uma vez que, graças ao plano de Ozimandias, o mundo está em paz, isso tem consequências inevitáveis
sobre o pasquim: “Agora ninguém mais pode
falar mal dos nossos velhos camaradas russos,
e lá se foi um artigo de duas páginas”.[20]
Página final de Watchmen: o destino do mundo nas mãos de um idiota. |
Assim,
ele deixa que seu assistente Seymor, a figura mais patética de Watchmen, escolha a matéria que será
manchete da próxima edição. Seymor está usando uma camisa onde se vê o mesmo
rosto sorridente que inicia a história. Enquanto ele se vira para escolher algo
no arquivo, um pouco de catchup cai em sua camisa, formando o mesmo desenho
fractal que se repete diversas vezes ao longo da história. O último quadrinho
mostra um plano detalhe da mão de Seymor se aproximando do diário. As
consequências de seu ato são imprevisíveis. Uma vez publicado o plano de Ozimandias, o mundo pode voltar ao
estado de tensão pré-guerra nuclear. Literalmente, o destino da humanidade está
nas mãos de um idiota. Com isso, Moore pretende demonstrar o princípio do
efeito borboleta: pequenos eventos podem ter grandes consequências.
Também
é interessante notar que essa cena é muito semelhante àquela que inicia a
história. Watchmen termina e começa
com a mesma imagem.
A
relação entre a teoria do caos e a teoria da informação, desenvolvida na
introdução, é trabalhada por Moore. Isso fica óbvio em certa sequência em que Ozimandias grava observações para uma
futura palestra:
Observação...
a vista da multitela é antecipada pela técnica de Burroughs. Ele sugeriu a
reclassificação das palavras e imagens, evitando a análise racional e permitindo
uma visão subliminar do futuro... um
exótico mundo visto apenas superficialmente. Essa entrada simultânea me atrai
como o equivalente cinético de uma pintura abstrata... pontos fluorescentes...
significados em um caos semiótico, perdidos num mar de incoerência.
Transitórios e esquivos, devem ser entendidos com rapidez. Animação por computador permeia até mesmo os sucrilhos do
café da manhã de um futuro alucinógeno. Os canais musicais processam infinitas
representações lineares... Estabelecidos esses pontos de referência, um
inesperado mundo se torna gradualmente discernível dentro da mídia. Esse modelo
fragmentado do amanhã alinha-se em áreas específicas, obscurecidas pela
indeterminação. Grandes suposições quanto a esse futuro devem ser afastadas...
podemos, contudo, lançar hipóteses sobre sua psicologia. Aliado à maciça aceleração tecnológica, prevista para o
fim do milênio, esse oblíquo mosaico revela a imagem de uma era de novas
sensações ou probabilidades. Uma era do imaginável feito concreto... e do milagre casual! O método tem um
precursor, ainda anterior a Burroughs, na tradição xamanística de divinizar
vísceras de bode espalhadas ao a acaso.[21]
O
discurso, evidentemente, é uma análise da multitela. Já nos referimos,
anteriormente, a esse equipamento composto de 36 televisores sintonizados em
emissoras de todo o mundo, com mudança aleatória de canal a cada 100 segundos.
O resultado disso é o que o próprio Ozimandias
chama de caos semiótico. O grau de entropia é elevadíssimo. Ao menos teoricamente,
Ozimandias só pode focar sua atenção
em um televisor, permanecendo os outros 35 como subliminares.
Flávio
Calazans explica que a psicologia define subliminar como qualquer estímulo
abaixo do limiar da consciência, estímulo que - não obstante, produz efeitos na
atividade psíquica.[22]
O
psicólogo Carl Gustav Jung propôs um modelo em que a consciência seria um
holofote, iluminando as áreas de interesse. Tudo que estivesse na penumbra de
tal foco seria subliminar.[23]
Wilson
Key levantou uma explicação fisiológica para o fenômeno. Abordando a fisiologia
do olho humano, ele descobriu que a fóvea, parte central do olho, do tamanho de
uma cabeça de alfinete e composta por células cones, é o foco da visão
consciente: “Key aprofunda esse conceito
fisiológico quando afirma que a visão periférica, canto do olho, composto de
células bastonetes, seria o responsável pelo registro visual das percepções
subliminares”.[24]
Calazans
afirma que a informação subliminar é destinada ao inconsciente, sendo
pré-verbal, icônica e figurativa. Baseando-se
na semiótica de Peirce, ele encaixa o subliminar no eixo paradigmático -
similaridade, modelo, íncone, não verbal, analógico. A informação consciente se
encaixa no eixo sintagmático - contigüidade, símbolos, verbal, lógico,
hierárquico.[25]
O
que Ozimandias propõe em seu discurso é aquilo que poderíamos chamar de visão
caótica, uma maneira de entender e observar fenômenos entrópicos. No caso, a
multitela é a representação do sistema não-linear que compreende as relações
políticas e sociais deste planeta.
Wiener
distinguia as categorias demônio maniqueu e demônio agositiniano. Os fenômenos
físicos são demônios agostinianos, pois seguem regras, leis, constantes, que
não mudam. O físico “não precisa temer
que, eventualmente, a natureza venha a descobrir-lhe os ardis e métodos e, em
consequência, mudar de tática”.[26]
Já
o demônio maniqueu é enfrentado pelos guerreiros e jogadores. Ele “é um antagonista como outro qualquer,
decidido a conquistar a vitória, e que usará de qualquer recurso de astúcia e
dissimulação para alcançá-la”.[27]
Segundo
Epstein, o cientista social lida com o demônio maniqueu:
As
leis que descobre sobre o desempenho dos indivíduos ou dos grupos podem ser
traduzidas, em certos casos, em dominação. Os “objetos” deste conhecimento, se
conscientes desse fato, podem, numa certa medida e também em certas
circunstâncias, engendrar uma mudança de seus comportamentos e consequentemente
uma alteração das “leis” que a regem.[28]
Diante
de tal sistema, que representa um fluxo constante de informações[29]
a estratégia clássica e determinista encontra sérias dificuldades. Para lidar
com esse sistema, Ozimandias propõe
que se evite uma análise racional e classificadora. Os eventos sociais, sendo
esquivos e transitórios, devem ser entendidos com rapidez.[30]
Do
mesmo modo que uma previsão metereológica pode ser bastante acertada a curto
prazo e não ter valor algum a longo prazo, as previsões sociais perdem valor
rapidamente. Essa é a razão pela qual poucos analistas foram capazes de prever
a queda do muro de Berlin: “Grandes
suposições quanto a esse futuro devem ser afastadas... podemos contudo lançar
hipóteses sobre sua psicologia”.[31]
Uma vez que, enquanto se
assiste a multitela, a maior parte das informações é adquirida de maneira
subliminar e, tendo em vista que o subliminar é destinada ao subconsciente, a
melhor resposta a esse estímulo deve ser uma resposta intuitiva. Em outras
palavras, Ozimandias está dizendo que é impossível lidar com fenômenos
caóticos, como os sociais, de acordo com a lógica clássica, hierarquizadora e
excludente. Isso porque fenômenos entrópicos interagem de tal maneira que haja
um fluxo constante de informações.
Ozimandias
refere-se a Willian Burrgoughs que, em seu livro Nucked Lunch, teria antecipado a técnica usada por ele. A técnica
teria um outro precursor nos xamãs, que faziam previsões sobre o futuro
observando as vísceras de um bode espalhadas ao acaso.
Mais
à frente, Ozimandias refere-se a outra situação que pode ser considerada como
uma visão caótica:
Alexandre
retornou à Babilônia para morrer de uma
infecção aos trinta e três anos.
Ali, entre os templos da cidade, eu finalmente vi suas falhas... meu herói não havia unificado o mundo e não sobreviveu a
ele. Desiludido, mas determinado a completar minha odissséia, fui visitar seu
túmulo em Alexandria. Na véspera de
meu retorno à América, vaguei pelo deserto
e provei um punhado de haxixe. O resultado foi uma visão que me transformou.
Voltando na história, eu ouvi reis mortos andando sob o chão e fanfarras soando
através de crânios humanos. Alexandre tinha ressuscitado uma era de farós. Sua sabedoria verdadeiramente
imortal, agora me inspirava. Sua magnificiência intelectual encorajara Ptolomeu a pesquisar o pivô do
universo. Erastóstenes mediu o mundo
usando apenas sombras...[32]
No livro As Portas da percepção, lembra a teoria
segundo a qual a função da memória seria eliminativa e não produtiva:
Refletindo
sobre minha experiência, vejo-me levado a concordar com o eminente filósofo de
Cambridge, Dr. C.D. Broad “que será bom consideremos, muito mais seriamente do
que até então temos feito, o tipo de teoria estabelecida por Bergson, com
relação à memória e ao senso de percepção. Segundo ela, a função do cérebro e
do sistema nervoso é, principalmente, eliminativa
e não produtiva. Cada um de nós é capaz de lembrar-se, a qualquer momento, de
tudo que já ocorreu conosco, bem como de se aperceber de tudo o que está
acontecendo em qualquer parte do universo. A função do cérebro e do sistema
nervoso é proteger-nos, impedindo que sejamos esmagados e confundidos por essa
massa de conhecimentos, na sua maioria inúteis e sem importância, eliminando
muita coisa que, de outro modo, deveríamos perceber ou recordar constantemente,
e deixando passar apenas aquelas poucas sensações selecionadas que,
provavelmente, terão utilidade na prática”. De acordo com tal teoria, cada um
de nós possui a Onisciência. Mas, posto que somos animais, o que mais nos
preocupa é viver a todo custo. Para tornar possível a sobrevivência biológica,
a torrente da Onisciência tem de passar pelo estrangulamento da válvula
redutora que são o nosso cérebro e o nosso sistema nervoso.[33]
Ou seja, toda informação
existente no Universo está ao nosso alcance. Ocorre que não temos capacidade
para lidar com uma quantidade tão grande de informação, assim a percepção é
feita através de modelos. Dessa maneira, a função do cérebro não seria captar
informação, mas selecionar informação, funcionando como um funil. Em
determinadas situações essa barreira pode ser levantada, expondo o indivíduo a
uma extraordinária quantidade de informação. Huxley sugere que os alucinógenos
teriam essa capacidade.
Situação semelhantes
podem ser observadas na mitologia de quase todas as culturas. Temos um exemplo
literário e ficcional no Aleph, de Borges:
Na parte inferior do
degrau, à direita, vi uma pequena esfera furta-cor, de brilho quase
intolerável. Primeiro supus que fosse giratória; depois compreendi que esse
movimento era uma ilusão produzida pelos vertiginosos espetáculos que
encerrava. O diâmetro do Aleph seria de dois ou três centímetros, mas o espaço
cósmico ali estava, sem diminuição de tamanho. Cada coisa (o cristal do
espelho, digamos) era infinitas coisas, porque eu a via claramente de todos os
pontos do universo.
O
próprio Borges refere-se a outros mitos a respeito do assunto.
Por volta de 1867, o Cap. Burton
exerceu o cargo de cônsul britânico no Brasil; em julho de 1942, Pedro
Henríquez Lheña descobriu numa biblioteca de Santos um manuscrito seu que
versava sobre o espelho que atribui o Oriente a Iskandar Zu al-Karmayn, ou
Alexandre Bircone da Macedônia. Em seu cristal refletia-se o universo inteiro.
Burton mencionava outros artifícios semelhantes - o sétuplo cálice de Kai
Josru, o espelho que Tarik Benzeyad encontrou numa torre (“Mil e Uma Noites”,
272), o espelho que Luciano de Samosata pôde examinar na Lua (“As Histórias
Verdadeiras”, I, 26), a lança especular que o primeiro livro do “Satiricon”, de
Capela atribuiu a Jupiter, o espelho universal de Merlin, “redondo, oco e
semelhante a um mundo de vidro” (“The Faere Queen, II, 2,19). [34]
Os
instrumentos referidos acima são instrumentos caóticos, onde não se apresenta
redundância e a entropia é máxima. A multitela de Ozimandias seria uma versão
tecnológica desses instrumentos. Enquanto observa, o herói tem diante de si o
mundo, seus processos políticos, sociais e psicológicos.
[1]Ver
Introdução.
[2]SANTOS,
Roberto Elísio dos. O Caos Semiótico nos Quadrinhos: Um Estudo das Graphic
Novels. Revista Comunicação e Sociedade,
18. São Bernardo do Campo, IMS, dezembro de 1991
[3]Ver:
OLIVEIRA, Ivan Carlo Andrade de Oliveira. Watchmen, o caos nos quadrinhos,
paper apresentado no GT Humor e Quadrinhos, XIX Congresso Intercom de Ciências
da Comunicação.
[4]Nunca é
demais lembrar que a teoria do caos e a teoria da informação não são
excludentes. Na verdade, alguns cientistas do caos, como Shaw, basearam suas
teorias nas descobertas da teoria da informação.
[5]GLEICK,
James. Caos: A Criação de Uma Nova
Ciência. Rio de Janeiro, Campus, p.3.
[6]Ibid,p. 90
[7]Ibid, op. cit. p. 91
[8]Ibid, p. 92
[9]Ibid, p. 93
[10]Ibid, p. 95
[11]Ibid, p. 98
[12]MOORE, op. cit, v 2-2, p. 28
[13]MOORE, op. cit. v. 3-1,p. 30
[14]MOORE, op. cit, v. 6-2, p. 27
[15]MOORE, op. cit., v. 6-1, p. 13
[16]LEROSI,
Paulo. História Revolucionária. Folha da
Tarde. São Paulo, 09 de outubro de 1990, p. 20
[17]MOORE, op. cit., v 2-2, p.32
[18]FARNER apud GLEICK,op. cit, p. 242
[19]MOORE, op. cit., v 6-1, p. 19
[20]MOORE, op. cit, v.5-1, p. 32
[21]MOORE,
op. cit, v. 6-2, p. 1 e2
[22]CALAZANS,
Flávio. Propaganda Subliminar Multimídia.
São Paulo, Summus, 1992, p. 260
[23]Ibid, p. 26
[24]Ibid, 29
[25]Ibid, 35
[26]WIENER apud EPSTEIN, Issac. Cibernética. São Paulo, Ática,
1986, p. 60
[27]WIENER apud Ibid, p. 60
[28]Ibid, p.
61.
[29]Ver
introdução.
[30]A
estrategia de Ozimandias encontra eco nas idéias de Pascal quando este se
refere à mente matemática (espirit de geométrie) da mente perceptiva (espirit
de finesse): “Os matemáticos, diz ele, não vêem o que está diante deles, uma
vez que se acostumaram aos princípios exatos de sua ciência e só raciocinam
após inspecionarem e darem uma disposição a seus princípios. Perdem-se, então,
nas questões de percepção, nas quais os princípios não possibilitam tal
disposição. Estas, continua Pascal, devem ser vistas de um só golpe e não por
um processo de raciocínio”. EPSTEIN,
op. cit., p. 64.
[31]MOORE, op. cit. v. 6-1, p. 1
[32]MOORE, op. cit., v. 6-1, p. 11
[33] Adous
Huxley HUXLEY, Adous. As Portas da
Percepção e o Céu e O Inferno. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,
1973, p. 10-11.
BORGES, Jorge Luis. O Aleph. Rio de Janeiro, Globo, 1986,p. 133
[34] Ibid,
pl 136
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