Capítulo 3 - Os autores


 
Ninguém mais lê poesia hoje em dia. Ela ainda é a coisa mais fácil de ser publicada e a última que as pessoas irão ler, talvez porque nas escolas tiveram de decorar dezenas de “mestres” parnasianos, empurrados garganta abaixo por velhos professores e acabaram concluindo que poesia é isso. Em Monstro do Pântano, você pode não ter uma boa poesia, mas há alguma poesia aqui que as pessoas podem ler, gostar e, quem sabe, ver como a poesia pode ser conectada a um mundo de idéias. É possível devolver poesia - e política - às pessoas através deste meio. [1]

            Dave Gibbons é um artista veterano nos quadrinhos britânicos. Um de seus primeiros trabalhos, de 1975, foi um super-herói africano chamado Powerman. O personagem era desenhado, escrito e publicado na Inglaterra, mas vendido apenas na Nigéria. Depois Gibbons iniciou sua frequente colaboração com a revista 2000 AD, para a qual ilustrou personagens como Harlen Heroes, Dan Dare e Rogue Trooper.
            Em 1979, Gibbons começou a desenhar as tiras diárias em preto e branco do Dr. Who, personagem famoso da ficção científica britânica. Em 1982 ele fez seu primeiro trabalho para os comics americanos, desenhando, para a DC Comics, a revista do Lanterna Verde. Mas, embora trabalhasse com quadrinhos desde o início da década de 70, a fama só chegou em 86 com o sucesso de público e crítica obtido por Watchmen.
            A partir de então Gibbons se tornou um dos astros dos quadrinhos americanos. Em 1987 ele e Alan Moore ganharam o Jack Kirby Awards como melhor dupla artista/escritor.
            O sucesso valeu-lhe um convite de Frank Miller para desenhar Give Me Liberty (publicado no Brasil como Liberdade - Um sonho americano). Um trabalho particularmente importante porque na época Frank Miller era o artista do mercado dos comics de maior sucesso e decidira não mais trabalhar com as grandes editoras. A editora Dark Horse ofereceu a Gibbons e Miller o total das vendas da revista. Em outras palavras, Give Me Liberty praticamente inaugurou a concessão de direitos autorais que caracterizou os quadrinhos americanos a partir dessa época.
            Depois disso, Gibbons resolveu produzir roteiros e escreveu histórias com Os Melhores do  Mundo, uma ótima mini-série em homenagem ao Batman e ao Super-homem da era de prata.
            Antes de começar a produzir histórias em quadrinhos, Alan Moore trabalhava como balconista em uma companhia de gás da Inglaterra: “I thought I really don’t want to be doing this for the rest of my life. I basically quit work and threw myself on the mercy of the social security for a couple of years[2]
            Moore deixou o emprego na companhia de gás já com a idéia de ser quadrinista. Seu primeiro trabalho no ramo foi um tira quinzenal em um jornal alternativo de Oxford, chamado Backstreet Bugle. Ele desenhava e escrevia:
Não havia pagamento, mas isso significava que eu tinha uma página a cada duas semanas pra exibir meus duvidosos dotes artísticos. Não aprendi muito a desenhar, mas descobri principalmente alguma coisa sobre a progressão quadro-a-quadro.[3]
            Na época ele completava seu faturamento fazendo a tira de Maxwell, The Magic Cat, para o Northampton Post. Foi quando teve a idéia de esquecer o desenho e se dedicar exclusivamente aos roteiros.
Perguntei ao Steve Moore, que era o único escritor de quadrinhos que eu conhecia, se ele poderia dar algumas dicas de como preparar um roteiro e se ele daria  uma olhada nas minhas primeira tentativas. Ele fez isso e aqueles primeiros esforços acabaram chegando à revista 2000 AD por meio de Alan Grant, que era o subeditor na época e provavelmente um dos melhores que a revista já teve.[4]
            Foi nessa época que surgiu a mania por roteiros extremamente detalhados (que chegam a gastar até uma página para descrever um único quadrinho). Moore conta que fazia tais roteiros para que fossem à prova de artista. Em 2000 AD ele nunca sabia quem iria ilustrar seus textos. Podia ser alguém experiente, como Dave Gibbons, ou um novato. Os roteiros detalhados garantiriam um mínimo de qualidade, caso fosse um novato.
            Seu primeiro trabalho de porte foi a série Miracleman, publicada em capítulos de oito páginas na revista britânica Warrior. Miracleman (Marvelman no original) era uma cópia do Capitão Marvel, criado por Mick Anglo em 1954. A editora L Miller &Son enfrentava na época o seguinte problema: O Capitão Marvel original havia deixado de ser publicado nos EUA no auge de sua popularidade, e ainda existia na Inglaterra um público ávido por suas aventuras. L Miller achou que não haveria problema em continuar a publicar o personagem com histórias escritas e desenhadas por ingleses. Para evitar problemas de copyright, foram feitas algumas modificações:
O Capitão Marvel receberia um novo penteado e um novo nome, tornando-se Marvelman. O Capitão Marvel Júnior passaria de um deficiente jornaleiro de cabelos escuros para um mensageiro loiro sem qualquer defeito, porém com o ridículo e estranho nome de “Dick Valente”. Mary Marvel foi, implacavelmente, transformada em menino, chamado ambivalentemente de Johnny Bates e Kid Miracleman. A palavra “SHAZAN” tornou-se “KIMOTA” e o vilanesco Dr Silvana contentou-se com o nome de Dr. Gargunza.[5]
            Alan Moore lia Marvelman na sua infância e, em 1981, numa entrevista à revista da Society of Strip Ilustrator, mencionou que gostaria que alguém trouxesse o herói de volta para que ele pudesse escrevê-lo. A entrevista provavelmente fez com Dez Skin o convidasse a escrever o personagem para a revista Warrior.
            O que Moore fez com o personagem foi uma antecipação do que seria Watchmen. Ele partia de uma idéia simples: como seria o mundo se um super-herói realmente existisse? Como ele se comportaria de verdade? A idéia veio-lhe quando ele ainda era criança e lia as paródias do Super-Homem que Harvey Kurtzman publicava na revista Mad.
O que mais me impressiona nessa história é que, quando o mundo real e suas preocupações se impõem no mundo artificial do super-herói, então, às vezes as coisas ficam muito divertidas, tocantes e interessantes. Kurtzman fez história pelos resultados humorísticos, mas me ocorreu  a possibilidade de que girando o parafuso pro outro lado, isso poderia gerar todo tipo de efeito. [6]
            O resultado foi revolucionário. Essa era uma perspectiva completamente nova nos quadrinhos.
Já em Miracleman vamos encontrar a preocupação de Moore com a ciência e suas consequências.
            Logo na primeira história, vemos uma manifestação contra uma usina nunclear. Uma criança segura uma faixa onde se lê: “Estamos apenas tomando um banho de radiação”.
            Em outra história o herói encontra na floresta um garoto obcecado pela possibilidade de uma guerra nuclear. Ele guarda alimentos num buraco de uma árvore e planeja fazer uma roupa anti-radiação com papel laminado. Revelando uma tranquilidade que só as crianças demonstram diante do desconhecido, o menino pede simplesmente: “Você poderia salvar o mundo, pelo menos eu e meus amigos, se houver uma guerra nuclear?”.[7] Moore coloca-se uma pergunta-se: o que um ser onipotente e bem intencionado faria diante da possibilidade de um conflito nuclear?
A resposta é “uma utopia”. Destruiria todas as armas nucleares e biológicas, acabaria com a fome, o crime e o dinheiro (melhor momento: Miracleman anuncia a Margareth Tatcher que acaba de revogar o conceito de mercado). Levaria o planeta a uma “Era de Ouro”. [8]
            O segundo trabalho de Moore numa série em continuação foi V de Vingança. A série surgiu quando o editor da Warrior, Dez Skin, pediu ao desenhista David Lloyd, que fizesse para a Warrior algo parecido com o Night Raven, que David desenhava para a Marvel UK: “recusei - porque posso ser muito bom em narrativa, mas não em roteiro. Então, sugeri Alan Moore. Foi dessa forma que V realmente começou”.[9]
            V de Vingança é uma história de horror e heroísmo ambientada numa Inglaterra de regime totalitário, um mundo muito próximo daquele imaginado por George Orwell em 1984:
A aventura se passa em 1997, depois de uma guerra nuclear que deixou Londres em permanente estado de sítio e dominada por um regime ditatorial e fascista, com campos de concentração onde ficam isolados os judeus, negros e homossexuais. O slogan desse governo é “Força através da pureza. Pureza através da fé”.[10]
            V, o personagem principal, é uma espécie de herói anarquista, culto e excêntrico. Cita Shakespeare e Goethe enquanto mata fascistas. Na história, Moore expõe suas idéias políticas, contrapondo-as ao fascismo. Não sabemos quem é V e não vemos seu rosto ,encoberto por uma máscara de teatro. Ele permanece  na mente do leitor não como uma pessoa, mas como um símbolo do anarquismo.
            Em uma das sequências, V transmite uma espécie de propaganda política pela TV. Enquanto vemos imagens de Hitler, Mussolini, Stalin e de bombas atômicas, lê-se:
Nós tivemos uma sucessão de malversadores, larápios e lunáticos tomando um sem números de decisões catastróficas. Isso é inegável. Mas quem os elegeu? Você! Você indicou essas pessoas. Você deu a elas poder para tomar decisões em seu lugar (...) Você encorajou esses incompetentes que transformaram sua vida profissional num inferno. Você aceitou suas ordens insensatas sem questionar. Sempre permitiu que enchessem seu espaço de trabalho com máquinas perigosas. Você podia ter detido essa gente.[11]
            A preocupação de Moore com armas atômicas, apenas entrevista no trecho acima, fica óbvia na introdução que ele escreve para a obra:
Há também uma certa parcela de inexperiência política de minha parte nos capítulos antigos. Em 1981, o termo “inverno nuclear”ainda não havia passado para o cotidiano da língua e, embora meu palpite sobre as catástrofes climáticas chegasse bem perto da possível verdade, a história ainda sugere que uma guerra nuclear, mesmo limitada, poderia deixar sobreviventes. Pelo que sei atualmente, isso não é possível.[12]
            V é um dos melhores exemplos do fenômeno a que se refere Paul Gravett (ver apresentação), segundo o qual os leitores jovens estariam se dirigindo aos quadrinhos para “obter notícias verdadeiras”. É notório que a maioria dos jornais impressos e televisivos sonegam e distorcem informações. Grande parte dos jovens não confia nesses veículos. Soma-se a isso o fato dos jornais terem um  certo ranço, que afasta os leitores mais jovens. Isso absolutamente não acontece com os quadrinhos. Num gibi espera-se encontrar terror, aventura, ficção e diversão em geral. É um veículo ideal para que o roteirista transmita sua ideologia. O problema era o conservadorismo das editoras:
durante décadas os quadrinhos britânicos não fizeram nada além de corroborar o status quo, como propaganda conformista ou escapismo juvenil (...) De fato, os editores passaram décadas notoriamente nervosos com relação a qualquer indício de controvérsia.[13]
            Esse quadro mudou a partir do momento em que surgiram os grandes astros da HQ, como Bill Sienkiewcz, Alan Moore e Frank Miller, que passaram a produzir histórias direcionadas a um público mais adulto. Os quadrinhos passaram a ser considerados como arte e isso permitiu que qualquer assunto pudesse ser tratado em suas páginas. As Hqs tinham também uma vantagem sobre o cinema: a grande equipe necessária para realizar um filme e os grandes orçamentos fazem com que muitas vezes os objetivos do roteirista se diluam. Uma história em quadrinhos, como Watchmen ou V de Vingança, é muito barata em comparação com os milhões de dólares necessários para realizar um filme. A editora não arrisca muito ao investir em algo inovador. A equipe pequena (em geral um roteirista e um desenhista) também permite que os objetivos sejam menos diluídos ao longo da produção.
            E, quando o jovem procura uma HQ como V de Vingança e Miracleman, o que ele encontra? Um vivo discurso anti-nuclear. O que autores como Alan Moore esperam é que esses jovens se tornem adultos menos conformistas que seus pais.
            Mas Alan Moore não se limita a avisar os leitores sobre o terror atômico. Em Monstro do Pântano, ele focou sua atenção na questão ecológica.
Seus textos em Miracleman haviam chamado a atenção da editora norte-americana DC, que resolveu testá-lo em título em baixa: O Monstro do Pântano.
            Moore não só impediu que a revista fosse cancelada, como a transformou em um clássico dos quadrinhos. A importância do Monstro do Pântano pode ser sentida na linha Vertigo, uma subdivisão da DC, que só publica histórias de terror no estilo das que Moore fazia com seu personagem.
            A introdução que o autor faz para o primeiro número da revista revela as suas preocupações:
Enquanto crianças desaparecidas nos contemplam de embalagens de leite, anúncios do mais recente filme sobre adolescentes mortos se espalham pelo quarteirão e o vírus da AIDS penetra na sociedade com aterradora facilidade, fruto de uma onda colossal de ignorância e preconceito (...) Enquanto nuvens radiativas sopram rumo ao ocidente e tratados banindo testes se desfazem em cogumelos de fumaça venenosa.[14]
            Na primeira série, Lição de Anatomia, Woodrue, o Homem Florônico, resolve se vingar  dos seres humanos pelos danos causados à natureza: “Vocês travaram um guerra não declarada contra o verde, sangrando florestas tropicais, alqueire alqueire, dia após dia[15]
            Para conseguir seu intento, ele faz com que todas as plantas do mundo aumentem a quantidade de oxigênio na atmosfera: “Os primeiros a morrer serão os mais jovens e os mais velhos... os galhos novos e os tocos! Os sobreviventes terão diante de si uma atmosfera tão inflamável que, à menor fagulha, será deflagrado um inferno![16]
            O Monstro do Pântano, que na verdade é um elemental das plantas, derrota Woodrue com um argumento lógico: “E o que... vai transformar o oxigênio... os gases... necessários para a nossa sobrevivência... quando os homens e animais morrerem?[17]
            Alan Moore usa informações e teorias científica o tempo todo em Monstro do Pântano. Já na primeira história, Woodrue tenta explicar a um general que o Monstro do Pântano não é o cientista Alec Holland, mas plantas pensando ser Holland. Para isso ele nos informa a respeito de uma experiência realizada com planárias:
Tempos atrás fizeram um experimento! Ensinaram uma planária a percorrer um labirinto simples! Educaram um verme! Depois trituraram seu corpo e deram a planárias que não sabiam percorrer o labirinto... mas, ao digerirem o colega, os vermes puderam percorrer o caminho perfeitamente! Entendeu, general? A implicação é que consciência e inteligência podem ser transmitidas como alimentos! [18]
Moore usou informações científicas sobre planárias no Monstro do Pântano.

         
   Moore está se referindo, obviamente, às experiências realizadas por James V. McConnell, professor de psicologia da Universidade de Michigan e editor da revista The Worm Runner´s digest (que mistura humor e ciência).
            James descobriu que cortando um platelminto ao meio desencadeava a reprodução assexuada do animal. O cientista, então ensinou o gusano a percorrer um labirinto e cortou-o ao meio. Os dois seres resultantes se revelaram aptos a atravessar o labirinto sem adestramento adicional. Ele descobriu também que a parte do animal que conservava melhor memória era justamente o rabo, e não a cabeça.
Na experiência seguinte, amestramos um grupo de gusanos “vítimas”, cortamo-los em pedaços e os demos de comer a um grupo inocente de canibais famintos. Depois de deixar que os canibais fizesse a digestão, começamos a dar-lhes o mesmo adestramento dado antes às pobres vítimas. Com grande satisfação, comprovamos que os canibais que haviam comido vítimas educadas aprendiam muito melhor (já desde a primeira lição) que os canibais que haviam comido vítimas não-amestradas. Tínhamos conseguido a primeira transferência de informação interanimal![19]

Em outra história, Moore faz uma retrospectiva de toda a vida na Terra, desde o período pré-cambiano até o cretáceo:
No cretáceo... quando a Terra se cansou de sáurios... apagando-os com neve... voltando sua atenção em vez disso para os macacos e cerejeiras... os guardiões não se moveram... para deter aquela mão... e deixar a era dos dinossauros continuar.[20]
            Mas a principal preocupação de Moore em Monstro do Pântano é mesmo com a ecologia. Um das melhores histórias[21]girava em torno do lixo radioativo jogado no Pântano. Em outra HQ, Able, a namorada do Monstro, se engaja em um grupo ecológico e sua fala a esse respeito parece refletir as preocupações do autor:
Às vezes, acho que para ajudarmos mesmo o ambiente, precisamos de um mundo diferente. Algum lugar que ensinasse a pensar e assumir responsabilidades... vejo gente trabalhando nisso, mas a coisa nunca sai do chão.[22]
            Quando o personagem percebe que pode recompor a biosfera do planeta, danificada por anos de poluição e desmatamento, ele decide não fazê-lo:
Se eu fosse alimentar o mundo... curar todas as feridas que as indústrias fumacentas do homem causaram... o que ele faria? Iria renunciar...à riqueza que suas serrarias trazem... pisar suavemente nas flores... e colher cada maçã com respeito... por este mundo abundante... em toda a sua providência? Não. O homem bombearia mais venenos.... construiria mais minas... garantido pelo conhecimento de que eu estaria à mão... para reparar a biosfera... incessantemente cobrindo cicatrizes... que ele agora causaria.[23]
            Depois do sucesso de Watchmen e Monstro do Pântano, Moore deixou a DC para investir em projetos pessoais. Foram trabalhos com nítido fundo político.
foi através das provocadoras pesquisas dos chamados graphic docu-dramas que o mundo da política real e os quadrinhos puderam se juntar. Alan Moore contribuiu com dois exemplos americanos, Real War Stories, sobre as injustiças do serviço militar e Brought to light, sobre as ações secretas da CIA no Terceiro Mundo.[24]
            Em 1990 ele deu início ao seu projeto mais ambicioso: Big Numbers (chamado originalmente de Mandelbrot Set), uma minissérie em 12 edições que se propunha a aplicar os conceitos da teoria do caos à vida dos habitantes de uma pequena cidadezinha britânica perturbada pela construção de um shopping center.
Parece pretensioso - e é, como tudo que Alan Moore faz. Também é de primeira qualidade. Moore não é considerado o melhor argumentista dos anos 80 à toa. [25]
            A seriedade do tema,  numa mídia que dominada por super-heróis, causou impacto na época. Apareceram diversos artigos e matérias nos mais diversos órgãos de imprensa. Big Numbers era considerada a obra definitiva de Moore sobre a geometria fractal:
Em BIG NUMBERS, através das pinturas de Bill SIENKIEWCZ, MOORE deverá levar a teoria do caos a pontos inimagináveis. Até onde é possível o equacionamento e as previsões de fenômenos aparentemente caóticos? É possível prever o tempo metereológico? As oscilações da bolsa de valores? As tendências de consumo? Os valores e padrões que uma sociedade passará a adotar? Será possível, através de pequenas mudanças no meio ambiente, como a introdução de um SHOPPING CENTER, alterar completamente todo o modo de vida de uma sociedade? A ciência do caos demonstra que sim. [26]
            O que Moore se pergunta em Big Numbers é se a teoria do caos estaria providenciando ferramentas que permitiriam diagnosticar as consequências de pequenas mudanças, empurrando a sociedade para um caminho previamente planejado.
            Uma questão que chegou a se colocar na época é como Moore, um anarquista declarado, trabalharia a problema do livre-arbítrio. Ou seja, como o ser humano comum poderia ser um agente consciente das transformações sociais - como em V de Vingança - numa sociedade na qual os governantes tivessem o controle através dos conhecimentos permitidos pela teoria do caos: “Desta vez, uma frase tão continuamente ouvida em histórias em quadrinhos parece ser a única aplicável: o destino de toda a humanidade parece estar realmente em jogo”.[27]
            Essa, no entanto, é uma pergunta que ficou sem resposta. Após desenhar alguns números da série, Bill Sienkiewcz entrou numa crise emocional e interrompeu a continuidade da série.[28] O desenho foi passado, então, para All Columba. Mesmo assim a série não foi concluída.
            O trabalho seguinte de Moore foi tão ambicioso quanto Big Numbers. Em From Hell, o roteirista se propôs a analisar a Inglaterra vitoriana através do caso de Jack, o Estripador.
“From Hell” é resultado de um meticuloso trabalho de pesquisa de Moore e equipe de assitentes, entre eles o roteirista Neil Gaiman (“Sandman”) e Jamie Delano (“Hellblazer”). Moore reconstituiu as discussões morais, políticas e estéticas da época. [29]
            A história, anunciada como um melodrama em seis partes e publicada em co-edição entre a Mad Love e a Tundra, “é mais uma oportunidade que Moore usa para atacar o que considera a hipocrisia e loucura do conservadorismo inglês”.[30]
            O roteiro parte da hipótese do pesquisador Stephen Knight, de que Jack era o médico da família real, Sir Willian Gull. Para Moore, Gull era um agente do moralismo vitoriano. O roteirista declarou, recentemente, que seu interesse não era necessariamente descobrir quem era Jack:
É o mito que estou tentando explorar. Não sei se foi Willian Gul (o médico da família real). Ele provavelmente foi um velhinho legal que fez um monte de coisas boas para as mulheres - foi ele quem descobriu a anorexia, entre outras coisas (...) Só estou interessado na mitologia do que aconteceu - aquelas pessoas, aquela época, aqueles eventos, aquela Londres. E todas as linhas da fábula, dos boatos, do mito, da lenda e da mentira que se extrai disso.[31]
            Recentemente, depois de ter recusado a fazer o roteiro do filme Robocop, Moore surpreendeu a todos ao aceitar produzir histórias para a editora Image, famosa por seguir uma linha na qual o desenho é mais importante que o roteiro.
No caso da Image, o que me atraiu foi o fato de que eles pareciam ter arrancado um belo naco de carne dos flancos da Marvel. Admirei isso. Eles deixaram tudo, montaram uma editora e realmente ferraram as coisas para a Marvel e possivelmente pra DC. Achei muito engraçado, sabe?[32]
            Moore escreveu histórias para Spaw e WildCATS, mas seus melhores trabalhos na Image seriam 1963 e Supreme. Certa vez ele declarou que o saudosismo era, provavelmente, o único motivo pelo qual continuava no meio quadrinístico. Essas duas séries mostram bem isso. Em 1963 ele criou uma editora imaginária que teria existido na década de 60. A história é contada ao longo de várias revistas dessa editora hipotética.
            Todos que conheciam um pouco de história dos quadrinhos perceberam claramente que se tratava de uma homenagem à Marvel da Era de Prata. Moore criou uma farsa, na qual ele mesmo é personagem, fazendo o papel de Stan Lee, o principal roteirista dos primórdios da Marvel.
            1963 é uma obra metalinguística. Ou seja, uma HQ que fala de HQs e analisa as transformações pelas quais essa mídia e a sociedade que ela reflete passaram nesses últimos 30 anos.
The idea of 1963 crystallized out of the Image thing. It struck me that I could use the simple, charming superhero world that I wanted to create to strike some interesting contrast with the Image characteres, who are representative of what superhero comics are now (...) 1963 women next to 1993 women. That alone is a study in contrast that I think I can fill a couple of pages wtih.[33]
            O detalhismo das referências de Moore em 1963 chega a ser doentio. As capas, a impressão, o texto e os desenhos lembram as revistas da Marvel da década de 60. Moore chega ao cúmulo de publicar propagandas, como aquelas que eram vinculadas nas revistas da época. Uma delas anuncia a venda de um boneco de mostro que tem a cara de Stalin, demonstrando o terror anti-soviético do auge da guerra-fria. Moore até mesmo escreve cartas de hipotéticos leitores da época e as responde. A metalinguagem chega a um de seus pontos mais criativos quando o Hipernaut (uma paródia do Homem de Ferro) enfrenta um monstro tri-dimensional. O monstro não tem as limitações de Hipernaut, um personagem de quadrinhos e, portanto, bi-dimensional. Em uma das sequências, o monstro puxa a borda do quadrinho, direcionando o raio do herói contra ele mesmo.
            Como já foi dito anteriormente, o Quarteto Fantástico ficou conhecido, entre outras coisas, por antecipar o uso de realidade virtual para simular experiências científicas. O equivalente do Quarteto no mundo de 1963, o grupo Mistery Incorporated, ganhou uma máquina denominada Maybe Machine. Na sequência em que se vê os personagens entrando na máquina, é possível ver de fundo um cenário criado em computador que inclui fractais.
            O trabalho mais recente de Moore, também pela Image, é Supreme, um personagem criado por Rob Liefield e desenhado pelo brasileiro Bené Nascimento (que assina Joe Bennett). Aproveitando o fato de que o Supreme é uma cópia descarada do Super-homem, Moore resolveu trabalhar de novo a metalinguagem, numa homenagem ao Homem de Aço da década de 60.
            Já na primeira história, Supreme visita a Terra dos Mil Supremes, onde estão os Supremes que já saíram de circulação. É, evidentemente, uma referência às mudanças editoriais que a DC realiza de tempos em tempos afim de revitalizar o Super-homem. O traço versátil de Bené Nascimento consegue imitar o estilo de vários desenhistas que ilustraram o personagem, de Curt Swan a Jack Kirby.
            A partir dessa apresentação, as histórias passam a seguir uma estrutura mais ou menos rígida:  Supreme visita certos locais, como a Cidadela Supreme, e tem lembranças. Esses flash backs são mostrados como se fossem histórias da década de 60. O desenho torna-se tosco e charmoso, como era o de Curt Swan. Até os balões, que hoje são arredondados, tornam-se irregulares como nuvens. Então voltamos ao presente e o Supreme enfrenta alguma ameaça que se relaciona com o flash back.
            Em 1963 e Supreme, Alan Moore aponta um caminho até então inexplorado nas aventuras de super-heróis: histórias em quadrinhos cujo principal tema são as histórias em quadrinhos.[34] na verdade, o primeiro a fazer isso foi Harvey Kurtzman, na revista Mad Nos dois trabalhos ele também faz um mea culpa. Depois de Watchmen os autores começaram a introduzir a realidade nas histórias de super-heróis, levando o gênero a uma era sombria e violenta. Os super-heróis teriam perdido seu charme: “I acknowledge all the stuff  I’ve done in the past, but I think we lost someting along the way”.[35]
 
            Atutalmente, Moore está envolvido com a série Américan Best Comics. A série é divida em várias revistas e mostra o que aconteceria com o mercado de quadrinhos se os super-heróis não tivessem surgido. Para ele, os quadrinhos seriam dominados por personagens da literatura pop do final do século passado, por personagens mitológicos e pela ficção-científica pulp.
            A mais aclamada das revistas dessa série é a League of  Extraordinary Gentlemen. Nela, vemos os principais personagens da literatura do século passado. Lá estão o Dupin, de Edgar Alan Poe, o Homem invisível, de H.G. Wells, O Capitão Nemo, de Júlio Verne, o Alan Quatermain, de Haggard e Mina, de Bran Stocker.
            O desenho coube a Kevin O´Neill, que fez uma Londres vitoriana e, ao mesmo tempo futurista.
            Outras revistas da série são: Tom Strong, Tomorrow Stories e Promethea.



[1]MOORE, Alan. Monstro do Pântano, 10. São Paulo, Abril Jovem, outubro de 1990, p. 4
[2]THE UNEXPLORED Medium. Wizard, 27. New York, Wizar Press, 43
[3]CONTOS  da Cripta. Wizard, 12. São Paulo, Globo, junho de 1997, p. 22
[4]Ibid, p. 22.
[5]MOORE,Alan. M***MAN: A verdade Real. Miracleman, 2. São Paulo, Tannos, dezembro de 1989, p.32
[6]CONTOS da Cripta, 27
[7]MOORE, Alan. Miracleman, 4. São Paulo, Tannos, 1990, p. 22
[8]FORASTIERE, André. Semideus Anarquista de Moore cria utopia. Folha de São Paulo, 15.04.1991
[9]LLOYD, David apud V de Vingança - A Gênese. Sandman, 5. São Paulo, Globo, 1990
[10]ROSA, Franco. Chega às bancas “V de Vingança”. Folha da Tarde, 28 de dezembro de 1990, p. 14
[11]MOORE, Alan & LLOYD, David. V de Vingança, III. São Paulo, Globo, 1990, p. 8-9
[12]MOORE, Alan. Eu dei início a V de Vingança. V de Vingança, I. São Paulo, Globo, 1989, p. 2
[13]GRAVETT, Paul. Os Gibis que derrubaram Margareth Tacher. O Estado de São Paulo,  Caderno 2, 28 de novembro de 1990
[14]MOORE, Alan. Introdução in Obras primas Vertigo - Monstro do Pântano. São Paulo, Metal Pesado, p. 4
[15]MOORE, Raízes in Ibid, p. 2
[16]Ibid, p. 2.
[17]Ibid, p. 14.
[18]MOORE, Lição de Anatomia in Ibid, p. 10.
[19] MCCONNELL, James. Aventuras de um cientista no mundo do humorismo in Correio da Unesco. S.d.b
[20]MOORE, Alan et alii. A Volta do Bom Deus. Monstro do Pântano, 19. São Paulo, Abril Jovem, julho de 1991, p. 42
[21]Essa história ficou famosa pela técnica narrativa de contar a trama através do ponto de vista de vários personagens
[22]MOORE, op. cit., p. 37
[23]MOORE, Alan. Monstro do Pântano, 19. São Paulo, Abril, 1991, p. 42.
[24]GRAVETT, op. cit
[25]FORASTIERE, André. Minissérie tenta explicar teoria do caos. Folha de São Paulo, 30 de abril de 1990, p. E-10
[26]RECADO, 58. São Paulo, Devir, p. 2
[27]Ibid, p. 2.
[28]Falou-se na época que Big Numbers havia sido destruída pela mesma força que pretendia estudar: o caos.
[29]ALAN Moore lança novo gibi. Folha de São Paulo, 15 de julho de 1991, p. 5-5
[30]Ibid.
[31]CONTOS  da cripta. Wizard, 12. São paulo, Globo, 12 de julho de 1997, p. 23
[32]Ibid.
[33]THE Unexplored Medium. Wizard, 27, New York, Wizard Press, novembro de 1993, p. 45
[34]Na verdade, o primeiro a fazer isso foi Harvey Kurtzman, na revista Mad
[35]ALAN Moore: The Interview from Hell. Hero Ilustrated, 7. Los Angeles, C. warrior, janeiro de 94, p. 96

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