Conclusão



Ao longo dos capítulos anteriores, vimos como, nesses mais de 100 anos, a ficção em quadrinhos esteve intimamente ligada ao tema ciência. A começar pelo fato de que, não fosse o rápido desenvolvimento da ciência no século passado, não existiria a tecnologia de impressão que permitiria o surgimento das histórias em quadrinhos.
Segundo Reinaldo de Oliveira,
tinia página de história em quadrinhos não é mias que um desenho, corno outro qualquer, que poderá ser i’isto por urna minoria de pessoas, se não fôr mecanicamente reproduzido nos milhares de exemplares de que se compõe urna edição de revista. Os modernos processos de reprodução grafica é que tornaram heróis como Flash Gordon, Fantasma ou Mandrake, conhecidos por milhões de pessoas; em todas as par/es cio mundo.[1]
Assim, as HQs são fruto de um desenvolvimento tecnológico e científico que começou com Gutemberg e foi se acelerando continuamente. No final do século passado, o grande desafio era a impressão em cores.
Naquela época se faziam várias experiências em impressão colorida, e as histórias em quadrinhos foram o melhor laboratório para os gráfico A questão do amarelo foi, inclusive, um pedido do pessoal da gráfica e/es queriam testar como ficaria a impressão de algo tola/mente nessa cor, O personagem de Oultcault (YeIllow Kid) foi escolhido e acabou por ficar famoso pela cor.[2]
Assim, aquele que é considerado por muitos como o primeiro personagem de quadrinhos, surge para testar urna novidade tecnológica: o uso da cor amarela na impressão.
Depois de passar anos entretida com divertimentos descompromissados, o que valeu a essa mídia o nome de comics, nos EUA, as HQs se voltaram para a ciência, usando-a corno fonte, referência e inspiração. É quando começam as antecipações. Flash Gordon antecipa o mecanismo de segurança e conforto das futuras astronaves; Buck Rogers antecipa o uso do recuo da pistola para o deslocamento no espaço; O Quarteto Fantástico prevê o uso da realidade virtual nos experimentos científicos e até mesmo os clones aparecem nas histórias em quadrinhos muitos anos antes da ovelha Dolly.
Urna pergunta que o leitor deve ter se feito é: por que isso? Porque a ficção constantemente acerta mais que a ciência? Uma questão, sem dúvida, difícil de ser elucidada. Urna tentativa de resposta foi dada no capitulo 1, quando se disse que Robida acertava muito porque também atirava muito. E à esmo. De fato, a quantidade de previsões realizadas na ficção parece ser maior que aquelas feitas nos laboratórios científicos. Mas isso não explica totalmente o tema.
No artigo Metaorganização da Informação, Magoroh Maruyama apresenta urna proposição segundo a qual podemos distinguir três universos, de acordo com a maneira corno eles organizam a informação: o universo classificador, o universo relacional e o universo relevante. Aqui nos interessam os dois primeiros.
Para Maruyama, o universo classificador, que prevalece nas culturas greco­-européia-americana, é o universo que
se caracteriza por ser dividido em categorias e sub-categorias. Daí o seu nome. A estrutura desse universo é hierárquica. As relações no universo classificador são concebidas em termos de superdivisões e subdivisões ou em termos de ligações internas na hierarquia das superdivisões e subdivisões. As relações são estáticas.[3]
Para Maruyama a ciência ocidental se desenvolveu no sentido do universo classsificador:
Muitas vezes a classificação é bastante artificial, como no caso do diagnóstico de doentes mentais. A pesquisa, porém, para ser ‘cientifica”, a codificação em categorias mutuamente exclusivas, tem que ser feita, pouco importando que seja artificial, contanto que seja “consistente”. Isso decorre da própria definição da informação no universo classificador.[4]
    Já o universo relacional diz mais respeito ao desenvolvimento das culturas orientais. Nesse universo 
as definições são dadas não pelas categorias e subcategorias, mas pelas interações e inter-relações. Assim, por exemplo, a guerra é aquilo que acaba com a paz e a paz aquilo que acaba com a guerra. A esposa é a pessoa casada com o marido e este a pessoa casada com a esposa. Isto não deve ser confundido com a “oposição dialética“. Sua natureza é s complementação, a harmonia e a fusão, não a oposição. No universo classificador, a pergunta básica é: “o que é isso? “. No universo relacional, por outro lado, a questão básica é: “Como isso se relaciona com as outras coisas.[5]

Maruyama apresenta como exemplo um cachorro e uma cadeira. No universo classificador não há relação entre o cachorro e a cadeira, senão acidental. No universo relacional, a relação entre um e outro não só é possível, como é mais importante do que o fato de que a cadeira pertence ao reino vegetal e o cachorro ao reino animal.
O universo relacional é o universo da arte. Para o pintor, o cachorro sobre a cadeira pode significar urna bela composição, embora para o cientista não represente nada. A linguagem da arte é uma linguagem analógica. Fazer arte é, muitas vezes, relacionar coisas que aparentemente não têm relação entre si. Como o cachorro e a cadeira.
Gripes e computadores não têm uma relação aparente. Vem o roteirista de quadrinhos e se pergunta: “ E se os computadores pudessem simular, em seus circuitos, o processo de desenvolvimento do vírus da gripe e, se, assim, eles conseguissem achar a cura para a doença?” E eis que ele prevê o uso da realidade virtual nas experiências científicas.
É justamente o fato de trabalhar com o universo relacional que permite ao artista, em diversas ocasiões, prever mais facilmente do que o cientista. As próprias idéias de Maruyama nos ensinam a não ser excludentes. A ficção prevê mais por trabalhar com o universo relacional, mas não só isso. Ela também acerta mais porque os cientistas estão comprometidos com um paradigma e com uma comunidade de pares, prontos a analisar e criticar suas proposições.
O cientista não irá prever algo que contradiga o paradigma no qual ele acredita.
Nenhum cientista diria que o homem pode chegar à Lua a bordo de um balão porque isso seria a negação de boa parte do paradigma dominante a respeito do espaço. Só a falta de oxigênio no vácuo já seria um argumento suficientemente forte para afastar a hipótese.
O medo de prejudicar sua reputação acadêmica também o impede de tentar relacionar coisas aparentemente dispares, ou de apresentar teorias excessivamente polêmicas. Esses dois aspectos explicam, provavelmente, porque a queda do muro de Berlim pegou quase todos os cientistas sociais de surpresa.
Já o roteirista de quadrinhos não tem essa preocupação. Seu trabalho é justamente relacionar coisas dispares. O sucesso de sua obra está justamente na capacidade de imaginar eventos originais, independente deles serem possíveis de acordo com o conhecimento científico atual ou não.
Ao estruturar seu texto, o roteirista estabelece a sintaxe do seu universo, as regras básicas às quais seu mundo virtual obedece. No mundo da editora Marvel é possível existir um homem formado de pedras (O Coisa), ou um homem capaz de incendiar seu corpo sem se queimar (o Tocha humana). Mas no mundo da Marvel dificilmente veremos o Homem-Aranha derrotando o Thor pela simples razão de que este é infinitamente mais poderoso que aquele.
O mundo das histórias em quadrinhos segue suas regras próprias que não precisam, necessariamente, corresponder ás leis físicas e biológicas de nosso mundo.
Nas histórias em quadrinhos, o HuIk é capaz de levantar o asfalto como se segurasse um tapete. Nas HQs é possível existir um metal maleável que resiste a tiros, como o da armadura do Homem de Ferro.
É justamente essa liberdade de não se ater ao conhecimento científico de sua época, de fazer relações insuspeitas, que permite ao artista tantas previsões acertadas. E claro que, para cada previsão acertada, há centenas de fenômenos que só existem e só existirão nos quadrinhos, como os exemplos citados acima.
Voltando à relação quadrinhos-ciência, percebemos que essa relação foi passando por um processo de maturação. Inicialmente os quadrinhos desconhecem a ciência, ocupados que estavam em sua fase descompromissada.
A partir da queda da bolsa, as HQs tomam consciência da realidade, e da ciência. Surgem HQs baseadas em descobertas científicas. Alguma, como Buck Rogers, têm cientistas em sua equipe criativa.
E os quadrinhos vão passar por longos anos assim, divulgando ou deixando-se influenciar pela ciência. Vamos, encontrar, inclusive, ótimos exemplos de divulgação científica, corno a História da Universo, de Gonick.
Mas é a partir da década de 80 que as HQs vão chegar à sua maturidade como forma de expressão artística em obras como Cavaleiro das Trevas, Watchmen, V de Vingança, Maus, Sandman e Os Companheiros do Crepúsculo.
Essa maturidade vai se refletir na relação com a ciência. Os quadrinhos entram na discussão epistemológica e ideológica que caracterizou o pós-modernismo. Temos a critica aberta à ciência em seus aspectos nocivos, cujo melhor exemplo talvez seja o Homem-Animal, de Grant Morrison. E temos uma discussão mais profunda e complexa da ciência, da vida, do perigo atômico, das nova teorias, em Watchmen, ou como a discussão sobre o destino e o livre-arbítrio em Skreemer.
É como se os autores (em especial os roteiristas ingleses, que foram os principais renovadores dessa midia nos anos 80) dissessem: “Por que não discutir nas HQs os assuntos que realmente importam no mundo contemporâneo?”.
E, num mundo dominado pela ciência e pela técnica, poucos assuntos ganham importância tão fundamental quanto a ciência:
Como preservar o poder e o domínio dos cidadãos numa sociedade irremediavelmente modelada e transformada pelo desenvolvimento e aplicações das ciências? Corno fazer com que sejam consultados quando as opções científicas e tecnológicas induzem a opções de modelos de sociedade? Como permitir a ocorrência de debates com conhecimento  de causa, como assegurar a transparência das competências e especialidades que se confrontam sobre uma dada questão, uma vez que e/as servem a interesses diferentes? A questão da democracia tecnológica está ligada a essas questões.[6]
Os roteiristas e desenhistas resolvem tomar partido a respeito das questões científicas. E talvez essa seja a principal característica dessa relação na era pós-moderna: os quadrinhos começam a tomar partido, ao invés de simplesmente divulgar a ciência. Algo que, aliás, já podia ser percebido na História do Universo, de Gonick.
Os quadrinistas não empreendem urna cruzada anti-ciência. Até porque eles reconhecem que os cientistas trouxeram mudanças extremamente positivas para o nosso mundo. É a ciência que permite ao homem realizar seus sonhos, seja voar, chegar á Lua, ou ser capaz de ver e ouvir algo que está acontecendo do outro lado do mundo.
Mas os quadrinistas tomam partido de uma ciência que respeite a natureza, que não esteja comprometida com objetivos militares, mas com valores humanistas, que não tenha como emblema o “avançar a qualquer custo”. Eles anseiam por uma ciência que não seja tão determinista e linear, que permita entender a complexidade das relações do mundo contemporâneo.
Talvez venha daí o fascínio pela teoria do caos. Grant Morrisou e Alan Moore, os dois roteiristas que mais trataram de questões da ciência, ambos, apesar de suas divergências, voltam suas esperanças para a teoria do caos.
Morrison falou claramente na teoria do caos em Asilo Arkhan e Homem-Animal. Para que não restassem dúvidas, ele tratou meio de introduzir um fractal da familia Mandelbrot numa das HQs do herói ecológico.
Moore, além de basear Watchmen na teoria do caos, como foi demonstrado ao longo desta dissertação, deu declarações à imprensa a respeito do assunto, nomeou seu trabalho seguinte de Mandelbrot Set (nome posteriormente mudado para Big Numbers) e chegou a produzir um filme sobre o assunto:
Os videomakers Alan Moore e Bill Sieniciewcz trancaram-se recentemente no que eles chamam de “um antro em Northampton”, a uma hora de Londre; só para traduzir em termos caóticos a queda do muro de Berlim - o resultado desse “delírio criativo” foi belo filme de arte premiado em vários festivais europeus.[7]
Com Moore e Morison surge algo que antes podia ser apenas entrevisto e adivinhado: a divulgação de paradigmas científicos nas histórias em quadrinhos.
Kuhn argumenta que, quando ocorre urna revolução científica, duas visões de inundo entram em conflito. Entretanto, “a superioridade de uma teoria sobre a outra não pode ser demonstrada através de uma discussão. Insisti, em vez disso, na necessidade de cada partido tentar convencer através da persuasão”.[8]
O que irá definir a vitória de um paradigma não é, necessariamente, o fato dele ser mais científico que o outro, mas sua capacidade de persuadir.
Para descobrir como as revoluções cientificas são produzidas, teremos, portanto, que examinar não apenas o impacto da Natureza e da Lógica, mas igualmente as técnicas de argumentação persuasivas que são eficazes no interior dos grupos muito especiais que constituem a comunidade dos cientistas.[9]
Para Gleick, a visão epistemológica de Kuhn pode ser usada, perfeitamente, para explicar o desenvolvimento da teoria do caos:
Uma nova ciência nasce de uma outra, que chegou a um ponto morto. Com freqüência uma revolução tem um caráter interdisciplinar - suas descobertas principais vêm, muitas vezes, de pessoas que se aventuram fora dos limites normais de suas especialidades. Os problemas que preocupam esses teóricos não são considerados linhas de investigação legítimas. Propostas de tese são rejeitadas, e artigos não são publicados. Os próprios teóricos não têm certeza de que identificariam a solução, se a encontrassem. Aceitam colocar em risco suas carreiras. Uns poucos livres-pensadores trabalham sozinhos e incapazes de explicar onde vão, receosos até mesmo de dizer aos colegas o que estão fazendo - essa imagem romântica está no centro do esquema de Kuhn,  e tem ocorrido na vida real, repetidamente, na investigação do caos.[10]

Gleick conta que boa parte dos cientistas que se voltavam para o caos sentiram o desestímulo do meio acadêmico, mas sentiam também a animação intelectual que vem das coisas realmente novas:
Para Freeman Dyson, do Instituto de Estudos Avançados, a informação sobre o caos foi “como um choque elétrico” na década de 70. Outros sentiram que pela primeira vez em suas vidas profissionais estavam testemunhando uma verdadeira mudança de paradigma, unia transjórmaçáo de um maneira de pensar.[11]
Kuhn lembra que essa resistência é mais forte junto aos cientistas que estão mais tempo no campo:
Max Planck, ao passar em revista a sua carreira no Scientfic Autobiography observou tristemente que “uma nova verdade científica não triunfa convencendo seus oponentes e fazendo com que vejam a luz, mas porque seus oponentes finalmente morrem e uma nova geração cresce familiarizada com ela”. [12]
Um paradigma emergente, se quiser suplantar o antigo, deve investir nas novas gerações de cientistas.
Segundo Kuhn, se o novo paradigma perdura por algum tempo e continua a dar frutos, alguns cientistas começam a se interessar em saber o porque de seus resultados.“Essa reação ocorre mais facilmente entre os que acabam de ingressar na profissão, por que ainda não adquiriram o vocabulário e os compromissos especiais de qualquer um dos grupos”.[13]
É aí, provavelmente, que entra o papel das histórias em quadrinhos. Dificilmente um cientista contrário à teoria do caos vai se deixar converter pela leitura de Watchmen ou Homem-Animal. Mas essas histórias têm o mérito de acostumar uma geração à visão de mundo de um novo paradigma. As HQs atingem justamente um público que está mais propenso a aceitar novas idéias. Elas atingem pessoas que provavelmente ainda nem são cientistas, mas que irão se familiarizar com termos como efeito borboleta e fractal.
Por outro lado, essas histórias em quadrinhos, ao discutirem valores morais e éticos no que diz respeito à ciência também convence os jovens da falácia do imperativo “avançar a qualquer custo”. Esses jovens terão mais facilidade em aceitar uma ciência que não agrida a natureza e que, pelo contrário, ajude a preservá-la; uma ciência que liberte, e não seja usada para o domínio, para a manipulação política e ideológica. Eles estarão mais propensos a procurarem alternativas para a utilização de animais em experiências científicas e, provavelmente não verão com maus olhos a perspectiva humanista nas ciências.
Embora não tenham resultado positivo a curto prazo [14] a divulgação de novos paradigmas na forma de histórias em quadrinhos pode ter ótimos resultados a longo prazo, ao acostumar um nova geração de cientistas com os termos e noções desse paradigma.
Aqui nos atemos mais demoradamente nos quadrinhos americanos, em específico aqueles escritos por roteiristas britânicos. É bem provável, no entanto, que o mesmo fenômeno de tornada de posição em favor de um paradigma científico emergente possa ser observado também nos quadrinhos europeus, japoneses e latino-americanos. Um exemplo brasileiro talvez seja a personagem Valéria Virtual, de Flávio Calazans, que divulga a geometria fractal e a realidade virtual em suas histórias.


[1] OLIVEIRA. Reinaldo de, Muito Obrigado. Sr. Gutemberg in MOYA. Alvaro. Shazan!. São Paulo Perspectiva. 1977. p.26l.
[2] MIRANDA. Sérgio. Era lima Vez Um Menino Amarelo... in Panacea, 38. São Paulo, Panacea, março/abril de 1995. p. 27.
[3] MARUYAMA. Magoroh. Metaorganização da Ínformção. FPSTEIN, Isaac (org). Cibernética e Comunicação. São Paulo. Cultrix, 1973, p. 151.

[4] Ibíd, p. 157
[5] Ibid, p-p. 151-158
[6] FAYARD. La Comunication Scientifique Publique.
[7]GREENHALGH, Laura. EI/e. Outubro de 1990. p. 174.

[8] Khun, Thomas. A Estrutura das Revoluções Cientificas. São Paulo, Perspectiva, 1992, p. 244

[9] ibid. p. 128

[10] GLEICK.Jamcs. Caos: A Criação de Uma Nova Ciência. Rio dc Janeiro, Campus, 1991,p. 33
[11] lbid.p.33
[12] Kulmn.op.ciLp. 191
[13] Ibid. p. 250
[14] Na verdade, a mininissérie de Moore e Sienkiwcz, Mandelbrot Set, teve seu nome mudado para Big Nunbers para evitar urna reação negativa da academia à geometria fractal: “Qualquer popularização da cultura POP pode ser tomada como uma prova posterior de sua invalidez. Então, apesar do respeito por Mandelbrot,. nós mudamos o título” (SIENKIEWCZ, Bill. Entrevista. Revista HQ, 1. São Paulo, Palermo, setembro de 1990. p. 9

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