Watchmen surgiu de um pedido que Dick
Giordano, editor da D.C., Comics fez a Alan Moore. A editora do Super-homem adquirira os direitos sobre
os heróis da extinta Charlton Comics e a idéia era fazer uma minissérie em 12
partes com eles. Mas a proposta apresentada pelo roteirista era tão
revolucionária que Giordano resolveu disassociá-la dos heróis da Charlton.
Assim, o Capitão Atómo tornou-se o Dr. Manhattan, o Pacificador tornou-se o Comediante
e o Besouro Azul contentou-se com o
título de Nite Owl.
O enfoque básico de Watchmen partia de uma idéia que Moore já havia experimentado em Miracleman: o que aconteceria se os
super-heróis realmente existissem?
Moore havia pensado
nessa possiblidade quando ainda era criança e lia as paródias de Harvey Kurtzman
na revista Mad: “That was a old idea that
I had since I was about 11. I
has just bought the Harvey Kurtzman Mad paperback for the first time (...) I
wanted to do similar thing to the parody that Harvey had done of Superman”
[1]
Mas Kurtzman usava o recurso
para causar um efeito cômico e Moore pretendia, girando o parafuso, alcançar um
efeito dramático. “Kurtzman did it
for humurous effect, but the possibility struck me that by turning the screw
the other way, it could have all sort of effects. I thought, ‘Wouldn’t it be
nice to take some charming old superhero and apply the real world to him?’”.[2]
Assim, Moore faz a
pergunta: como seria um mundo sobre o qual os super-heróis realmente
caminhassem? Como eles se relacionariam com os seres humanos normais, quais
seriam suas angústias, que consequências isso teria?
Para responder a essas
perguntas, Moore lançou mão de um dos princípios da teoria do caos: o efeito
borboleta. Esse conceito foi elaborado a partir da grande dependência das
condições iniciais apresentadas pelos fractais. A mundança de um único número
pode transformar completamente o formato de um desenho fractal. A mesma regra vale para alguns eventos não
lineares. Assim, o bater de asas de uma borboleta em em Pequin pode modificar o
sistema de chuvas em Nova York.
Moore transpôs o conceito para os quadrinhos. Se o bater
de asas de uma borboletas pode ter consequências tão imprevistas, image-se o
surgimento de super-heróis... Para Moore, o mundo jamais seria o mesmo.
Com
a sua magnífica maxissérie em 12 edições (no Brasil foram apenas seis!), Moore
desferiu o mais virulento golpe que os super-heróis haviam sofrido até então. O
que ele fez? Ora, provou que suas histórias eram, de fato, impossíveis. No
entanto, por mais paradoxal que possa parecer, a impossibilidade não se deve
aos superpoderes. Embora inviáveis, esses dons são condição necessária do
gênero e devem ser aceito de antemão. O que Alan Moore pôs a pique - o
verdadeiro absurdo das histórias que lemos - é a ilusão de que criaturas
beirando a onipotência podem existir no mundo real sem afetar o cotidiano.[3]
Até
então, os avanços tecnológicos conseguidos pelos super-heróis não afetavam em
absoluto o mundo em que viviam. Um exemplo disso são as histórias do Quarteto Fantástico, no qual apareciam
foguetes estelares e computadores capazes de criar realidade virtual:
Todo
leitor do Quarteto Fantástico sabe que Reed Richards inventou, há cerca de oito
anos, um foguete de propulsão estelar com capacidade de dobra espacial. Pois
bem, mesmo assim, nada mudou. A Terra do universo Marvel teve o mesmo
desenvolvimento histórico que a nossa, apesar de contar com um sistema de
transporte que torna viagens a Alfa Centauro quase tão simples quanto uma ida à
padaria da esquina. Duro de engolir, não?[4]
O mundo de Watchmen que, até a década de 60 era semelhante ao nosso,
transforma-se com o surgimento do
primeiro herói com superpoderes de verdade:
E
nada mequetrefe como escalar paredes ou força proporcional à de uma aranha.
Estamos falando de alteração estrutural da matéria, telecinésia, manipulação do
espaço-tempo continuum e muita força física. Na prática, onipotência. Bastou o
surgimento desse personagem pro mundo de Watchmen divergir inteiramente do
nosso. Os Estados Unidos venceram a Guerra do Vietnã e a Guerra Fria se
encerrou com a vitória do Ocidente ainda nos anos 60 e não na década de 90. O
dia-a-dia das pessoas foi influenciado. Entre vários prodígios científicos e
tecnológicos, Manhattan também tornou possível a produção barata de carros
elétricos eficientes, decretando o fim do motor a combustão.[5]
Essa
nova perspectiva e a narrativa não-linear, repleta de flash-backs tornaram a
obra a mais revolucionária da época. Segundo Alex Ross (desenhista de Marvels), Watchmen
mostrou
que algo realmente puro e épico podia ser criado numa narrativa em partes e com
muitos personagens. Sua importância não é tão grande na escala, e sim na sua
execução e na inteligência com que foi criada. Inspirou em muito o meu modo de
pensar os super-heróis de hoje.[6]
Para
Kurt Buziek (roteirista de Marvels),
Watchmen “elevou o nível do discurso porque foi muito bem-feita, pensada num
patamar que os quadrinhos ainda não tinham alcançado” [7]
O
aclamado escritor de Sandman, Neil
Gaiman, diz que ficou espantado com a técnica pura da história, assim como a
disposição de Alan Moore e Dave Gibbons em não demonstrar o quanto ela era
impressionante:
é
que os dois não perceberam a importância da série. A estrutura brilhante e
rígida não deu espaço para mudança, e a história superou tudo. Eles começaram
contando a história definitiva dos super-heróis, mas ela ficou muito maior do
que isso. [8]
Vista
sob a perspectiva dos ano 90, Watchmen
destaca-se por ser uma obra nitidamente pós-moderna. Algumas características das obras
pós-modernas podem ser facilmente encontradas na HQ. Entre elas o uso de formas
gastas e da cultura de massas. Na época em que Watchmen foi publicada, a narrativa super-heroiesca parecia
destinada ao desaparecimento.
A
construção em abismo é outra característica que encaixa Watchmen no grupo de obras pós-modernas. A história inicia com uma
trama básica, a respeito de um matador de mascarados, e, a partir dela,
desmembram-se outras tramas. Como num fractal, à medida em que nos
aprofundamos, a história vai nos revelando novas complexidades.
Temos
ainda o uso de personagens reais (Nixon aparece na história), o pesadelo
tecnológico (o mundo de Watchmen está à beira de uma guerra nuclear), o uso de
citações e metalinguagem (um garoto lê, em uma banca de revistas, um gibi de
piratas que pode ser considerado como uma metáfora de toda a história).[9]
Mas
a principal característica pós-moderna da história parece ser a mistura do
sério com o divertido. Divertido porque Watchmen
é uma história de super-heróis e, em certo sentido, policial, e guarda muitas
características desses dois gêneros.
O
caráter sério é a a discussão sobre o mundo em que vivemos, sobre o que nos
tornamos e sobre a ciência e a razão.
Dr. Manhattan é uma metáfora da inteligência laplaciana. |
Um
dos pontos-chave dessa discussão é o Dr.
Manhattan que, graças a um acidente em um laboratório, torna-se onisciente
e onipresente. Sua criação parte do princípio de que o universo é um relógio e
que, sabendo-se como funcionam seus mecanismos, é possível prever sua
trajetória. Essa noção do universo como um relógio remonta a Laplace, sendo uma
promessa da filosofia das luzes do século XVIII. Acreditava-se que a natureza
seguia regras fixas que podiam ser descobertas com o uso da razão, como no caso
de um relógio[10].
Para Laplace,
Uma
inteligência que conhecesse em determinado momento todas as forças da natureza
e posição de todos os seres que a compõem, que fosse suficientemente vasta para
submeter estes dados à análise matemática, poderia exprimir numa só fórmula os
movimentos dos maiores astros e dos menores átomos. Nada seria incerto para ela,
e tanto o futuro como o passado estariam diante de seu olhar.[11]
A
inteligência laplaciana seria onisciente, mas impotente para realizar
alterações no mundo à sua volta. Uma vez que tudo é determinado, restaria a ela
apenas “um olhar entediado sobre o porvir,
pois nada poderia ocorrer que não tivesse previsto”.[12]
A
inteligência laplaciana, como uma metáfora da ciência clássica, é representada
em Watchmen pelo personagem Dr. Manhattan. Manhattan é um ser superpoderoso, mas incapaz de tomar decisões que
não estejam incluídas no curso dos acontecimentos. À certa altura o personagem
diz: “Tudo é pré-ordenado, até minhas
respostas. Todos
somos marionetes, Laurie. A diferença é que eu vejo os
barbantes”.[13]
Manhattan
vive uma sabedoria que, ao invés de libertá-lo, torna-o prisioneiro dos
acontecimentos. Essa postura o exime de responsabilidades. Quando a Terra está
ameaçada por uma guerra nuclear, ele não se preocupa em intervir, já que tudo
está pré-ordenado. Essa noção de uma ciência isenta e objetiva remonta ao
positivismo, que acabou criando uma espécie de “religião da ciência”. Segundo
Japiassu, a ciência
não
conseguiu evitar expor-se aos desvios ideológicos e mitológicos. Isso começou a
ocorrer quando cientistas do século XIX (sobretudo Conte), ao saudarem a
“evolução” científica e o advento do “estado positivo”, confiaram à ciência o
cuidado exclusivo de garantir, em lugar da magia, das ideologias, das religiões
e das superstições, dos saberes esotéricos e dos mitos superados, a ordem
religiosa e política.[14]
Moore
usa Manhattan para criticar os aspectos potencialmente nocivos da ciência,
representados pela bomba atômica. Na frase de Einstein, “A liberação da bomba atômica mudou tudo, exceto nosso modo de pensar. A
solução para esse problema está na cabeça da humanidade. Se eu soubesse, teria
me tornado um relojoeiro”. [15]
A
modernidade não cumpriu sua promessa de que um acréscimo de razão levaria a um
acréscimo de felicidade. O desenvolvimento da ciência nos levou à bomba
atômica, à poluição, aos alimentos cancerígenos e às experiências com animais.
Edgar
Morin argumenta que estamos vivendo um
progresso inaudito dos conhecimentos científicos, correlativo com um progresso
múltiplo da igorância, progresso dos aspectos benéficos da ciência,
correlativo com o progresso dos aspectos nocivos e mortíferos; progresso
acrescido de poderes da ciência, correlativo com a impotência dos cientistas a
respeito desses mesmo poderes.[16]
Mas,
para o cientista, o problema não está na ciência,
essa pura e desinteressada. O problema está na técnica, que pode ser usada tanto para o bem quanto para o mal e,
principalmente, na política, essa
potencialmente má e nociva. Para o cientista, é a política que perverte a
utilização da ciência.
Entretanto,
separar a ciência da política não é uma opção possível. No século passado
tínhamos, é verdade, a ciência do
cientista solitário, uma figura romântica e abnegada. Mas a partir da Segunda
Guerra Mundial o quadro muda. Surgem os grandes projetos militares, que agregam
grande quantidade de cientistas. O Estado passa a subsidiar as pesquisas
visando, em geral, resultados armamentísticos.
Dr. Manhattan: Um corpo vivo e um corpo morto têm o mesmo número de partículas. |
Segundo
Japiassu,
Foi
a partir, sobretudo, da última Grande Guerra, que a orgulhosa e prometéica
imagem da ciência começou a ser abalada. Até mesmo antes. Em 1935, E. Husserl,
ao analisar a crise das ciências européias e a fenomenologia transcendental,
num clima de confronto contra o irracionalismo nazista e contra o positivismo
dos cientistas e filósofos, faz o seguinte diagnóstico: “Ocorreu uma reviravolta,
na virada do século, na atitude em relação às ciências. Esta reviravolta diz
respeito ao modo geral de avaliar as ciências. Não visa sua cientificidade;
visa aquilo que as ciências, que a ciência em geral significou e pode
significar para a existência humana” (...) Não se trata mais da
“cientificidade” das ciências, mas de sua significação e seu poder. Hiroshima
reforçou os motivos desse movimento de desconfiança da ciência, pois ela teria
se “desumanizado”. Mas surge um outro motivo: o segredo, não o de Estado, mas o
do pacto celebrado entre os
cientistas e o poder político-militar. Com isto, desmorona-se a imagem
tradicional do sábio, para quem a norma do verdadeiro se convertia em
imperativo ético.[17]
Essa
desumanização da ciência é mostrada em Watchmen.
Ao ser informado da morte de um amigo, Manhattan
responde simplesmente: “Um corpo vivo e
um corpo morto têm o mesmo número de partículas. Estruturalmente não há
diferença. Vida e morte são meras abstrações. Não me preocupo com isso”.[18]
Em outra sequência, o Comediante mata uma vietnamita grávida. Manhattan assiste a tudo impassível. O Comediante percebe isso:
Você
me viu. Você podia ter transformado o revólver
em vapor, ou as balas em mercúrio ou a garrafa em flocos de neve! Podia ter teleportado um de nós pra
Austrália... mas não levantou um dedo. Não dá a mínima pros seres humanos. Eu
notei (...) Você está se distanciando. Está se tornando indiferente. Que Deus nos ajude.[19]
Moore
não está falando apenas do Dr. Manhattan, ele está se referindo à ciência em geral.
Como dizia Einstein, o mundo não está ameaçado pelas pessoas más, mas por
aqueles que permitem a maldade.[20]
O mundo não está ameaçado pelos militares que jogaram a bomba sobre Hirsohima,
mas pelos cientistas que permitiram que isso fosse feito sob o pretexto de que
nada poderiam fazer. Como Manhattan, os cientistas se tornaram prisioneiros da
razão que deveria libertá-los. O conceito de uma ciência neutra e imparcial
fica nitidamente abalado sob esse ponto de vista.
Morin
lembra que o racionalismo iluminista, do qual essa visão positivista é fruto,
era um racionalismo humanista,
ou
seja, associava sincreticamente o respeito e o culto do homem, ser livre e
racional, sujeito do univeso, e a ideologia de um universo integralmente
racional. Assim, esse racionalismo humanista apresentou-se como uma ideologia
de emancipação e progresso.[21]
Entretanto,
a imagem do universo como um relógio determinista deixou de lado a noção de
humano. A ciência, preocupada com a eficiência, esqueceu o humanismo
iluminista. Os cientistas do projeto Manhattan
(que criou a bomba atômica)[22]
não estavam preocupados com os mortos, órfãos e viúvas. Eles queriam produzir
uma bomba que funcionasse. Bastante emblemática é a cena de Tempos Modernos em que Carlitos serve de
cobaia para uma máquina que iria alimentar os operários enquanto eles
trabalhavam, fazendo com que o horário de almoço também fosse produtivo. A
máquina é recusada pelo dono da fábrica não porque fosse desumana, mas porque
era não-funcional.
Essa
ciência ligada a grandes projetos - na maioria das vezes projetos militares -
tirou o ser humano da posição de sujeito, relegando-o à condição de objeto.
Para Morin, isso não é algo exterior à ciência, mas está ligado a um dos
princípios da ciência ocidental, a manipulação:
A
ciência ocidental desenvolveu-se como ciência experimental e, para
experiências, teve de desenvolver poderes de manipulação precisos e seguros
(...) No seu universo fechado, o científico está convencido de que manipula
(experimenta) para a verdade, e manipula não só objetos, energias, electrões,
não só unicelulares e bactérias, mas também ratos, cães, macacos, convencido de
que atormenta e tortura pelo ideal absolutamente puro do conhecimento. Na
realidade, ele alimenta também o circuito sócio-histórico no qual a
experimentação serve a manipulação.[23]
Assim,
“o desenvolvimento da técnica não provoca
somente processos de emancipação, provoca processos novos de manipulação do
homem pelo homem, ou dos indivíduos humanos pelas entidades sociais”[24]
Quando o Dr. Manhattan diz que um corpo vivo e
um corpo morto têm o mesmo número de partículas, ele não está tratando o ser
humano como sujeito, mas como objeto. Da mesma forma ele poderia dizer que um
ser humano e um boneco de plástico são iguais, porque têm o mesmo número de
partículas. Gráficos e estatísticas confirmariam sua hipótese. Para Morin, é
justamente aí que se encontra o perigo: “Basta,
pois, que os homens sejam considerados como coisas para que se tornem
manipuláveis e à mercê, submetidos à ditadura racionalizada moderna que
encontra o seu apogeu no campo de concentração”.[25]
Mas
o mundo não precisa necessariamente ser visto como um relógio determinista e
ordenado. A natureza pode ser vista como uma mistura de ordem e desordem:
Um
universo estritamente determinista, que seria apenas ordem, seria um universo
sem devir, sem inovação, sem criação. Mas um universo que fosse apenas desordem
não conseguiria constituir organização, portanto seria incapaz de conservar a
novidade e, por conseguinte, a evolução e o desenvolvimento. Um mundo absolutamente determinado, como um mundo
aleatório, são pobres e mutilados; o primeiro é incapaz de evoluir e o segundo
incapaz de nascer.[26]
A sugestão de Moore para
essa questão é muito próxima daquilo que Morin chama de pensamento complexo.
Devemos imaginar um mundo que é uma mistura de ordem e desordem, de
determinismo e indeterminação.
A ciência clássica
interessava-se apenas pelos sistemas lineares e ignorava os sistemas
não-determinados.
Aprendemos
que há modelos clássicos onde tudo é determinado pelas condições iniciais, e há
também os modelos mecânicos quânticos, onde as coisas são determinadas mas
temos de enfrentar um limite sobre o volume de informação inicial que podemos
colher. Não linearidade era uma palavra só encontrada no fim do livro. Um aluno
de física fazia um curso de matemática, e o último capítulo era sobre equações
não-lineares. Pulávamos isso em geral.[27]
A
abordagem da teoria do caos, dando mais importância aos sistemas não lineares
permite um avanço a respeito da idéia de destino:
Em
nível filosófico, pareceu-me como uma maneira operacional de definir o
livre-arbítrio, de uma maneira que permita reconciliá-lo com o determinismo. O
sistema é determinado, mas não podemos dizer o que ele fará da próxima vez.[28]
Em
outras palavras, o destino existe, mas pode ser modificado a qualquer momento
por aquilo que os teóricos do caos chamam de efeito borboleta. É como um homem
caminhando em uma estrada. Sabemos de onde a estrada vem e para onde ela se
destina. Entretanto, um único passo diverso dos outros é capaz de colocá-lo em
outro caminho, que o levará a um lugar completamente diferente.
No
fanzine Recado encontramos um exemplo
quadrinístico dessa noção de destino:
Os
eventos que levaram ao surgimento das Tartarugas ninjas parecem ter sido
projetados na eternidade. Kevin Eastman vivia com sua namorada em Amherst,
Massachussetts e trabalha fazendo pacotes em um supermercado. Um dia, voltando
para casa do trabalho, achou no chão do ônibus uma revista de histórias em
quadrinhos chamada Scat. Ele deu uma folheada na revista e o trabalho de um
desenhista chamado Peter Laird chamou sua atenção, descobriu também que a
revista era editada em uma cidade próxima chamada Northampton. Pegou uns
desenhos seus e foi até a editora onde acharam que seu trabalho muito parecido
com o de Peter Laird e lhe deram seu endereço. Eastman escreveu uma carta para
Laird que respondeu com um telefonema, marcaram um encontro no estúdio de Laird
e acabaram se tornando grandes amigos.[29]
O
resultado dessa amizade foi as Tartarugas
Ninjas. O sucesso desses personagens permitiu que Eastman criasse a Tundra,
uma das principais editoras dos EUA e reduto de quadrinhos de qualidade, com a Heavy Metal, Cages, de Dave Mackean e From
Hell, de Alan Moore. Se Eastman não tivesse encontrado o gibi no chão do
ônibus, ou não tivesse tomado a iniciativa de procurar Laird, nada disso
aconteceria.
A
todo momento estamos tomando decisões que podem modificar completamente nosso
destino. É como se nos entrássemos em outra “estrada do destino”. Mas outras
decisões podem nos enviar a outras estradas.
Mas
como viver num mundo onde a determinação cede lugar à indeterminação, onde
ordem e desordem estão intimamente relacionados? Para Edgar Morin a resposta é
o pensamento complexo.
No
final do século passado o físico James Clark Maxwell criou um ente que pode ser
visto como uma alternativa à inteligência
laplaciana, o demônio de Maxwell:
Este
demônio separador opera abrindo e fechando um furo na parede divisória entre
duas porções de um vaso cheio de gás com temperatura uniforme. Permitindo
apenas a passagem das moléculas mais
rápidas de A para B e as mais lentas de B para A, o demônio podia provocar um
gradiente de temperatura, isto é, elevar a temperatura de de B e abaixar a de
A, sem ele próprio dispender nenhuma energia.[30]
O
gás aqui é um exemplo de caos. Como se sabe, os gases foram descobertos pelo
médico Jan Baptista Van Helmont, em 1624. Como esses ares não possuíam um
volume específico, mas, mesmo assim, preenchiam um recipiente, Helmont achou
que eram um exemplo de completo caos. Chamou-os de caos, pronunciando a palavra
à maneira de Flanders, que soava como gás.[31]
A
solução encontrada pelo demônio de
Maxwell para produzir ordem a partir desse caos inicial é a estratégia.
A
estratégia permite, ao partir de uma decisão inicial, encarar um certo número
de cenários para a ação, cenários que poderão ser modificados segundo as
informações que nos vão chegar no decurso da ação e segundo os imprevistos que
vão surgir e perturbar a ação.[32]
Já
nos referimos anteriormente ao conceito de entropia[33].
Ela representa o segundo princípio da termodinâmica, a tendência do universo à
perda de energia, a uniformidade de temperatura. O demônio imaginado por
Maxwell consegue transformar esse gás em estado entrópico em uma fonte de
energia disponível. Ele faz isso aproveitando-se do próprio estado caótico das
moléculas:
O
demônio de Maxwell, ao contrário da inteligência laplaciana, possui incerteza
sobre a velocidade da molécula que se aproxima do furo, cuja abertura controla.
A partir da informação que obtém a cerca da velocidade da molécula, ele cria
ordem (as mais velozes para um lado, as mais lentas para outro), a partir da
desordem ou entropia inicial.[34]
Ozymandias age como o demônio de Maxwell, gerando ordem a partir do caos. |
A multitela é um
aparelho que contém 36 televisores com mudança aleatória de canal a cada 100
segundos. O conjunto não possui uma forma, uma gestalt definida. É a entropia
não em seu estado máximo, mas num grau muito elevado para os padrões humanos. À
certa altura o herói explica a utilidade do aparelho: “Este planeta está cheio de eventos... e, numa época como esta, nenhum deles é insignificante. Preciso
de informação na sua forma mais concentrada”[35]
Em frente à multitela, Ozimandias age como o demônio de Maxwell, que monta sua
estratégia a partir das informações que recebe a respeito da velocidade das
partículas que se aproximam da abertura. A partir da entropia inicial, Ozimandias consegue perceber uma forma,
um padrão: “Homens musculosos portando
armas... justaposição de violência e imagens infantis... desejo de regressão e
tendência para subtrair responsabilidades... os itens configuram um quadro de
guerra”.[36]
Em outras palavras, onde
aparentemente só há caos sem sentido, Ozimandias
consegue ver distinguir informação e reaproveitar essa informação, usando-a
proveitosamente para tomar suas decisões.
Ozimandias percebe o poder potencialmente
destrutivo da ciência, representado pela bomba atômica. Como veremos no
capítulo seguinte, a criação da bomba atômica é um efeito borboleta, que
provoca grandes alterações em termos sociais, políticos e ecológicos. Assim, o
personagem decide engendrar um plano para impedir a guerra nuclear. Através da
engenharia genética, ele cria um suposto ser alienígena e transporta-o para o
centro de Nova York, matando três milhões de pessoas. Isso faz com que os
governos da União Soviética e Estados Unidos, convencidos de que estão
enfrentando uma ameaça alienígena, paralisem as hostilidades no Afeganistão.
Hostilidades essas que levariam, inevitavelmente, ao conflito atômico.
O plano inspira-se no
episódio do Nó Górdio. As profecias diziam que quem conseguisse desatá-lo
conquistaria todo o mundo. Alexandre Magno cortou-o ao meio com a espada: “Um problema intratável pode ser resolvido somente
indo além das soluções convencionais. Alexandre entendeu isso, dois mil anos
atrás, na Górdia”.[37]
Sua atitude, ao não
separar ordem do caos, ao trabalhar com a estratégia e com as soluções
inusitadas, ao criar sinergia a partir da entropia inicial, encaixam-no dentro
do que Morin chama de pensamento complexo. Para o filósofo francês:
a
realidade que a ciência investiga não é uma realidade trivial, que não são
verdades evidentes sobre as quais poderemos pôr-nos de acordo com facilidade, à
mesa do café. É que o real é perfeitamente espantoso. É por isso que Popper tem
razão quando diz: uma boa teoria científica é uma teoria extremamente
audaciosa, isto é, uma teoria totalmente assombrosa.[38]
Imaginando
que o Dr. Manhattan seria o único
ser capaz de atrapalhar seus planos, Ozimandias providencia para que ele se
exile em Marte. Mas a estratégia trabalha com todas as possibilidades e se
aproveita do inesperado. Assim, ele se aproveita de uma tempestade de tachyons,
que cria uma interferência estática no determinismo do Dr. Manhattan, fazendo com que tudo fique imprevisível.
Já
foi dito anteriormente [39]
que a entropia não é necessariamente negativa. Se for possível controlá-la,
como faz o demônio de Maxwell, ela
se torna uma fonte de energia. A linguagem do vídeo-clip é um exemplo de como a
entropia pode ser usada para melhorar a comunicação. Uma mutação genética que
permita aos afetados por ela resistirem melhor às alterações ambientais é um
exemplo de entropia positiva no campo biológico.
A
tempestade de tachyons nos brinda
com um dos melhores momentos de Watchmen.
Manhattan, privado de seus
determinismo, parece extasiado como uma criança que descobre novidades num
objeto que parecia completamente conhecido: “Eu quase havia me esquecido o excitamento de não saber, as delícias da incerteza...”.[40]
É
como se Moore estivesse dando um recado para os cientistas. Ensimesmados em seu
mundo determinista, repleto de gráficos e estatísticas, eles se esqueceram do
aspecto humano, da não linearidade, do acaso, da incerteza...
[1]THE UNEXPLORED Medium. Wizard,
27. Nova York, Wizard Press, novembro de 1993, p. 43
[2]TALES from the Cript. Wizard 52.
New York, Wizard Press, p. 72
[3]JOTAPÊ. Alan Moore é um
chato! Wizard, 10. São Paulo, Globo,
maio de 1997
[4]Ibid
[5]Ibid.
[6]ALEX Ross apud SHUT, Craig. Watchmen, 10 anos depois. Wizard, 3. São Paulo, Globo, outubro de 1996, p. 17
[7]KURT Buziek apud Ibid, p. 17.
[8]Neil Gaiman apud Ibid, p. 17
[9]OLIVEIRA, Ivan Carlo Andrade
de Oliveira. A Ciência e a Razão nas Histórias em Quadrinhos. CALAZANS, Flávio
Mário de Alcântara. As Histórias em
Quadrinhos no Brasil, Teoria e Prática. Coleção GT Intercom, 7. São Paulo,
Intercom, 1997, p. 100
[10]Talvez o
surgimento dos relógios tenha fascinado a tal ponto os filósofos e cientistas
que eles imaginaram um mundo que fosse
como ele: determinista e seguindo leis estáveis.
[11]Laplace apud EPSTEIN, Isaac.
Teoria da Informação. São Paulo,
Ática, 1986, p. 30
[12]Ibid, p.31
[13]MOORE, Alan & GIBBONS, Dave. Watchmen, v. 5-1, p. 7
[14]JAPIASSU, Hilton. A Crise da Razão e do Saber Objetivo - As
Ondas do Irracional. São Paulo, Letras&Letras, 1996,p. 44
[15]EISNTEIN apud MOORE, op. cit. ,
v2, p. 28
[16]MORIN, Edgar. Ciência com Consciência. Portugal,
Europa-América, 1994, p. 15
[17]JAPIASSU, op. cit., p. 49
[18]MOORE, op. cit, v 1-1, p. 21
[19]MOORE, op. cit., v 1-2, p.
49
[21]MORIN, op. cit, p. 124
[22]O nome do personagem Dr.
Manhattan é, provavelmente, uma referência a esse projeto
[23]Morin, op. cit., p. 85
[24]Ibid, p. 85.
[25]Ibid, p. 126
[26]MORIN op. cit., p 157
[27]FARNER apud GLEICK, op. cit, p. 241
[28]FARNER
apud Ibid, p. 242
[29]Recado, 162. São Paulo, Devir, p. 4.
[30]ESPSTEIN, op. cit. p. 31
[31]ASIMOV, op. cit., p. 255
[32]MORIN, op. cit., p. 116
[33]Ver introdução
[34]EPSTEIN, op. cit., p.32
[35]MOORE, op. cit., v5-2, p. 7
[36]Ibid, p. 8
[37]MOORE, op. cit. v. 6-1, p. 27
[38]MORIN, op. cit., p. 47
[39]Ver
introdução.
[40]MOORE, op. cit. , v. 6-2, p.
7
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